Cavalaria feudal: a desconstrução de um heroísmo romanceado

Por Gabriel de Lima

Capital para a origem da literatura moderna, o romance parodístico O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha, concebido pelo castelhano Miguel de Cervantes em 1605, narra as desventuras e ilusões de um humilde fidalgo metido a cavaleiro andante. Um dos episódios mais emblemáticos que discursam sobre essa instituição social em declínio, a Cavalaria, encontra-se no capítulo intitulado “Del donoso y grande escrutino que el cura y el barbero hicieron en la libreria de nuestro ingenioso hidalgo”, no qual os dois referidos personagens promovem um certo julgamento moral e literário dos livros ali presentes. Na palavra do padre, figura simbólica que lidera esse processo inquisitório, a dissociação entre o disparate e a verdade seria fundamental à consagração de obras ditas “cortesãs e claras”, textos ficcionais esses que espetacularizam e fomentam um embelezamento irreal de um período histórico sangrento e vingativo da Europa Medieval.

Ainda hoje, grande parte das concepções que se têm sobre a instituição cavaleiresca resvala nessa literatura secular e cortesã descolada da realidade histórica. Segundo Dominique Barthélemy, historiador e docente da Universidade de Sorbonne, a invenção dessa narrativa remonta à “França do século XII”, sendo que lemas como justiça e nobreza de costumes passam, então, a ser atribuídos aos integrantes dessa entidade posteriormente performática. Nesse sentido, a Editora da Unicamp publicou Cavalaria: da Germânia antiga à França do século XII, uma obra documental elaborada pelo pesquisador francês Dominique Barthélemy, que integra a Coleção Estudos Medievais. Ao revisitar a Era Feudal, o autor pretende recuperar os sentidos originais que cercavam a figura do guerreiro montado em um cavalo, distanciando-se, por conseguinte, das idealizações cristãs.

O livro começa com um questionamento central que medeia todo o estudo proposto: “O que define a Cavalaria?”. Deixando de lado toda a roupagem produzida pela Igreja e pelos romancistas, qual o substrato histórico e social que delineia essa seita guerreira e vassálica? Com o apoio do Ministério francês das Relações Exteriores e Europeias, Dominique proporciona um choque de realidade a seus leitores, sobretudo quando demonstra, ancorado em uma extensa bibliografia, as idiossincrasias surgidas com a “mutação Cavaleiresca” nos anos 1000, que deu início à decadência dos ideais cavaleirescos e, conjuntamente, do sistema feudalista.

Para essa restauração histórica, são ressaltados os mecanismos particulares que regem, antes do século XII, a Cavalaria e a sua dinâmica com as diversas sociedades europeias. Detentores de uma maior autonomia, os combatentes cavalarianos estavam, na perspectiva do autor francês, alicerçados na importância concedida, pela população pós-romana, ao ato de guerrear, ainda mais quando se tem um continente instável geopoliticamente. Retornando à “Germânia” antiga, Dominique Barthélemy afasta as narrativas estigmatizantes da presença de uma cultura bárbara na Europa Setentrional, mostrando, de forma inversa, a incidência de um caráter violento sobre quase todas as atitudes cavaleirescas, nas quais “o ideal de fidelidade vassálica [é] temperado pela honra vingativa”, até mesmo entre os pares.

A obra conta com um prefácio redigido pela tradutora e historiadora Néri de Barros Almeida e é composta por sete capítulos que compreendem a transição gradual dos valores cavaleirescos – de uma extremada violência para uma cristianização moralizante –, do espaço analisado – “da Germânia antiga à França do século XII” – e da configuração social da civilização europeia medieval. Além disso, são fornecidos alguns textos adicionais que auxiliam o entendimento desse período histórico, como “Referências genealógicas simplificadas”, “Lista cronológica das batalhas mencionadas” e “Índice de autores ou obras antigas e medievais (citações e comentários)”.

Traduzido em conjunto por Néri de Barros Almeida e Carolina Gual da Silva, ambas doutoras em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o texto possui múltiplos direcionamentos – seja a divulgação científica, seja servir como material didático. Ex-membro da Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, Dominique Barthélemy ministra aulas de história medieval há mais de três decênios. É importante salientar que, dando destaque à ficcionalização controversial sobre a Cavalaria, em especial, após os anos 1200, o pesquisador francês não descarta, de forma alguma, a importância da literatura realizada nesse espaço temporal para a consumação de uma “mutação Cavaleiresca”.

As bases teóricas e de documentação utilizadas pelo autor expõem certas contradições e ambiguidades, que evidenciam a subjetividade e a artificialidade do significado por trás da palavra “Cavalaria”, possibilitando, a partir disso, a desconstrução da ideia fantasiosa de “um habitus Cavaleiresco” solene, enobrecedor e heroico. A distinção social em uma civilização feudal estratificada – realeza, nobreza, clero e servos – era o que verdadeiramente imperava nessa instituição guerreira, dado que esses combatentes, ao serem defensores das propriedades feudais, possuíam uma enorme notoriedade em suas comunidades, como é bem relatado em Cavalaria: da Germânia antiga à França do século XII.

Da Germânia do século X, Dominique Barthélemy consegue captar uma outra faceta da Cavalaria, uma outra narrativa que é despojada das excentricidades cristãs, sabendo que a Igreja é o principal agente na virada ideológica dessa entidade vassálica. Nesse exaustivo empreendimento que conduz a obra historiográfica, a maestria e a engenhosidade de Barthélemy se sobressaem, fazendo com que seus leitores viajem para uma Europa ainda medieval, marcada pelas incertezas políticas e territoriais do sistema feudalista. Na passagem do guerreiro violento para o herói cortesão, Cavalaria: da Germânia antiga à França do século XII finca-se no debate historiográfico como um texto imprescindível para uma revisão das ideias dominantes que se construíram a respeito da instituição Cavaleiresca.

Para saber mais sobre o livro, visite o nosso site!

A Cavalaria: da Germânia antiga à França do século XII

Autor: Dominique Barthélemy

ISBN: 9788526809000

Edição: 1a

Ano: 2010

Páginas: 624

Dimensões: 16 x 23 cm

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