Na morte de Emily, a ressurreição de Dickinson

Por Gabriel de Lima

Independente em 1776, o período pós-colonial estadunidense foi marcado por uma política de reafirmação dos elementos nacionais, que pretendia criar uma distinção em relação à sociedade britânica, visto que esta remetia ao passado de subalternização. Transpassando para o âmbito literário, surgiram alguns poetas, nessa toada, como Henry Wadsworth, que versaram sobre a cultura e as paisagens desse país recém-formado. Na produção desses letrados, percebeu-se uma padronização na convenção poética adotada por eles, que, assemelhando às cantigas populares, fomentava a regularidade métrica e de forma e a preferência por estrofes rimadas. No entremeio disso, o Transcendentalismo – movimento filosófico de bases kantianas – surgiu, opondo-se ao extremo racionalismo da Era Moderna – que adentra, por meio de Ralph Waldo Emerson, na Literatura norte-americana.

A partir desse retrospecto moralista e político, Emily Elizabeth Dickinson, uma poeta interiorana dos meados do século XIX, popularizou-se após a publicação póstuma de suas obras, que revelaram um caráter grandemente revolucionário e modernizador dentro da poesia dos Estados Unidos. Republicado pela Editora da Unicamp, em uma nova edição revista e ampliada, Emily Dickinson: Não sou ninguém é uma “seletânea” que, tendo o também poeta Augusto de Campos como organizador e tradutor, abarca vários textos de Dickinson escritos entre 1852 e 1884. Em formato bilíngue, o livro destaca a variabilidade composicional da autora estadunidense, englobando os denominados letter-poems ou, como traduzidos em português, “poemas-cartas” ou “cartas-poemas”, nos quais existem a ruptura e a transgressão dos gêneros textuais que foram canonicamente estabelecidos pelo Ocidente.

Uma figura introvertida e reclusa, a autora encontrou nesse tipo de correspondência um suporte textual tanto para manter um diálogo com o mundo exterior quanto para a remodelação da estrutura clássica da poesia. Isso posto, o teórico Augusto de Campos elenca, ao longo da Introdução do livro, algumas inovações que resultam da pena ágil e frenética de Emily Dickinson: a concisão de seus versos e estrofes que, inversamente, possuem uma alta densidade de significação, o uso não convencional de letras maiúsculas e pontuação e a singularidade da disposição do texto poético com o emprego de recortes e pausas inusitadas.

No que consente à impressão de seus escritos, a descoberta de tais após o falecimento da poetisa, mesmo sendo este um episódio crucial em seu sucesso editorial e crítico, foi seguido de uma editoração desmedida e descuidada que adulterou os textos originais de Dickinson. Somente em 1955, em um processo de reavivamento da autora norte-americana, o estudioso Thomas H. Johnson lançou The poems of Emily Dickinson. Nesse livro, os poemas foram reeditados, respeitando as escolhas e o estilo particular da autora. Segundo Campos, foi, a partir desse volume, que finalmente se demonstrou a genialidade da “‘ur-Cinderela’ da poesia moderna” estadunidense.

Com base nessa e em outras fontes, o tradutor e poeta concretista Augusto de Campos, com a destreza literária que lhe é própria, verteu os versos dickinsonianos para a língua portuguesa. Um desafiante processo de identificação do literato lusófono com o texto e suas particularidades, sendo estas conservadas em Emily Dickinson: Não sou ninguém. Após sete anos da primeira edição, Campos retornou a esse livro, ampliando-o para 80 poemas, sendo que uma de suas motivações foi a divulgação massiva, no período recente, dos escritos da poetisa.

Biograficamente, é factual que a produção poética da autora esteve, quase sempre, em um diálogo com as suas vivências e a maneira pela qual ela se relacionava com outras pessoas, sendo assim, torna-se imprescindível mencionar algumas informações de seu pacato cotidiano. Emily Dickinson, embora cursasse o ensino primário, pode ser considerada uma autodidata, sobretudo no ramo da poesia. Cuidadora do lar da família, ela nunca se casou, mantendo-se enclausurada, por toda a sua vida, em um simples casebre no interior dos Estados Unidos. A associação paradoxal entre um completo isolamento do mundo que a circunda e as profundas reflexões filosóficas encontradas em seus versos, provocando, a partir disso, um sentimento de surpresa e fascínio em seus admiradores, é o que marca toda a leitura da obra de Dickinson.

Influenciada pelo Transcendentalismo de Ralph Waldo Emerson, a escritora rompeu, por meio de versos sintéticos e densos, os limites dessa e de outras correntes literárias contemporâneas ou que a precederam. Uma voz dissonante que, mesmo demorando muito tempo para ser finalmente ouvida, impôs o seu espírito vanguardista dentro das Letras estadunidenses. As temáticas e as fórmulas tradicionais são repaginadas, de modo radical, pela escrita de Dickinson, que se desloca de elementos da natureza para questões metafísicas em uma mesma estrofe.

A complexidade filosófica em seus versos indica que o objeto central para a poetisa é a própria poesia, um instrumento empírico para as mais diversas experimentações linguísticas e de significação produzidas por ela, originando “um idioleto de rara beleza”. Enfim, Emily Dickinson: Não sou ninguém deixa evidente por quais meios a autora se valeu na construção de seu próprio estilo poético, pressupondo que Dickinson determinou, para si mesma, os ditames composicionais de um texto literário – como a ocorrência da intergenericidade e da constante substantivação –, que produziram importantes alterações no poema da Era Moderna.

Para saber mais sobre a obra, visite o nosso site!

Conheça também os volumes 1 e 2 do livro Poesia completa, traduzidos e organizados por Adalberto Müller.

Emily Dickinson: Não sou ninguém

Autora: Emily Dickinson

ISBN: 9788526812987

Edição: 2a

Ano: 2015

Páginas: 192

Dimensões: 14 x 21 cm

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