Gigantes e atemporais

Por Beatriz Burgos

O gênero satírico na literatura nasce em Atenas, na Grécia, no século V. Seu apogeu, contudo, acontece em Roma, até que é consolidado na Idade Média, marcado por cantigas trovadorescas de escárnio e maldizer. A sátira é caracterizada pela forte carga de ironia e sarcasmo, nem sempre com o objetivo de induzir ao riso, mas geralmente ambicionando uma denúncia ou crítica social aos costumes e a ridicularização caricata de pessoas de grande relevância, como políticos e artistas. Ainda na Idade Média, monges e burgueses franceses são satirizados pelo escritor francês François Rabelais, um dos mais conhecidos nomes da sátira literária.

Rabelais, nascido na França em 1494, foi escritor, padre e médico francês do Renascimento. Ficou para a posteridade por seu trabalho na literatura, em que usou, também, o pseudônimo Alcofribas Nasier, um anagrama de seu verdadeiro nome. Sua particular sátira religiosa, o humor escatológico e as suas narrativas cômicas deram-lhe a fama de grande humanista entre seus contemporâneos, abrindo-lhe o caminho para a perseguição – teve, por ordem da Sorbonne, seus livros confiscados. No entanto, justamente em virtude do emprego da sátira, do realismo e da abordagem de questões filosóficas em suas obras, Rabelais é considerado um dos fundadores do romance moderno. É conhecido principalmente como autor das obras satíricas Pantagruel e Gargantua, uma série de livros escrita no século XVI e republicada pela Editora da Unicamp e pela Ateliê Editorial.

O primeiro livro: a vida muito horrífica do grande Gargantua, pai de Pantagruel foi publicado sob o pseudônimo de Rabelais, possivelmente em 1534. Na obra, o autor conta a história do gigante Gargantua, pai de Pantagruel – que acaba por se tornar tão grande quanto o pai. Narra episódios como o estranho nascimento de Gargantua pela orelha, sua genealogia, seu apetite gigantesco e sua educação. O primeiro livro, que rapidamente se tornou popular, está profundamente inserido não somente nas conjunturas sociais de seu tempo, como também nas do mundo de hoje, e por isso é considerado genial.

O sucesso da história de Gargantua levou Rabelais a escrever o segundo título da série, cujo enredo corre em paralelo com o primeiro. Em O segundo livro do bom Pantagruel, rei dos dipsodos, restituído a seu natural, com os feitos e proezas espantosas, o autor apresenta ao leitor o personagem Panurge, o anti-herói boêmio, provocador, pícaro, libertino, canalha e covarde, que se junta a Pantagruel e ao grupo de outros personagens que o acompanham em suas aventuras nas obras seguintes. O livro consegue alcançar, também, o leitor contemporâneo quando aborda temas como a invasão e a guerra com humor e aventura.

O terceiro livro da série, um dos mais ricos e sofisticados dentre a sátira rabelaisiana, é publicado sob o título de O terceiro livro dos fatos e ditos heroicos do bom Pantagruel. O enredo concentra-se no desejo de Panurge, amigo de Pantagruel, de se casar – no entanto, acredita que, se o fizer, será traído e roubado pela esposa. O quarto volume, O quarto livro dos fatos e ditos heroicos do bom Pantagruel, trata da viagem de Panurge em busca de uma resposta para a dúvida: “Devo ou não me casar?” – mesmo os oráculos tendo o avisado de que não.

Os quatro livros compõem a série Bom Pantagruel, republicada pela Editora da Unicamp e pela Ateliê Editorial, com tradução de Élide Valarini Oliver, que recebeu o Prêmio Jabuti de Tradução 2007 pelo trabalho em O terceiro livro do bom Pantagruel. Rabelais estudou o grego antigo e o aplicou na invenção de centenas de palavras novas na obra, algumas das quais se tornaram parte da língua francesa. Assim, o trabalho de tradução dos livros, ricos em neologismos, expressões da língua francesa e passagens nem sempre bem explicadas, consiste em um verdadeiro desafio literário, e Valarini Oliver o fez com maestria.

Não somente na língua francesa a obra teve influência: os neologismos, a partir das inúmeras traduções feitas dos livros ao longo dos séculos, foram adotados por outros idiomas, inclusive pelo português. É a partir dos livros de Rabelais que nascem os adjetivos “pantagruélico”, derivado de Pantagruel, relativo a refeições fartas em alegre companhia, e “gargantuano”, derivado de Gargantua, que significa enorme, insaciável. A influência social e cultural da obra também é notável: Pantagruel transforma-se em personagem-símbolo do pantagruelismo, a filosofia dos que gozam da vida numa “certa alegria de espírito, confeitada no desprezo pelas coisas fortuitas” (em francês: “une certaine gaîté d’esprit confite dans le mépris des choses fortuites”).

O grotesco e o escatológico são muito presentes nos livros, geralmente usados como recurso para construção do humor: no primeiro volume, o gigante Gargantua nasce pedindo cerveja, com uma ereção de várias jardas de comprimento, o que proporciona muita diversão às suas aias; no livro em sequência, narra-se um episódio em que Pantagruel, Panurgo e seus companheiros invadem um acampamento e afogam os sobreviventes em urina. Sob essa ótica, a série de Rabelais se inscreve no estilo grotesco, que pertence à cultura popular e carnavalesca. Mikhail Bakhtin, linguista e crítico literário, faz uma análise dos livros em Rabelais e seu mundo, em que estuda a interação entre o social e o literário. Na obra, o pensador aponta que, em Rabelais, a noção do carnaval está conectada à do grotesco. 

Renegando a tradição, a escolástica e a cavalaria, Rabelais, com a publicação da série de livros Pantagruel e Gargantua, em uma França de extrema intolerância e opressão religiosa, pretendeu libertar as pessoas da superstição, dos dogmas e das interpretações adulteradas que a Idade Média alimentara – sem, no entanto, se voltar contra a Igreja. Sua obra é concebida como uma das mais originais manifestações artísticas da crença do homem nas suas capacidades, simbolizadas pelo gigantismo das personagens. A utilização do grotesco para demonstrar que a vida e a morte andam sempre de mãos dadas é um dos traços revolucionários de um livro medieval, embora moderno como nenhum outro escrito nos quase 500 anos que se seguiram até aqui.

Para saber mais sobre os livros, visite o nosso site!

O primeiro livro: a vida muito horrífica do grande Gargantua, pai de Pantagruel

Autor: François Rabelais

ISBN: 9788526815209

Edição: 1a

Ano: 2022

Páginas: 324

Dimensões: 27,00 x 18,00 x 2,00 cm

O segundo livro do bom Pantagruel, rei dos dipsodos, restituído a seu natural, com os feitos e proezas espantosas

Autor: François Rabelais

ISBN: 9788526815193

Edição: 1a

Ano: 2022

Páginas: 264

Dimensões: 27,00 x 18,00 x 2,00 cm

O terceiro livro dos fatos e ditos heroicos do bom Pantagruel

Autor: François Rabelais

ISBN: 9788526815216

Edição: 2a

Ano: 2022

Páginas: 304

Dimensões: 27,00 x 18,00 x 2,00 cm

O quarto livro dos fatos e ditos heroicos do bom Pantagruel

Autor: François Rabelais

ISBN: 9788526812826

Edição: 1a

Ano: 2015

Páginas: 456

Dimensões: 27,00 x 18,00 x 3,00 cm

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