Por Gustavo Gonçalves Ferreira
As nossas memórias, muitas vezes, são difíceis de descrever. Ligadas intrinsecamente com a história, a relação delas com os sentimentos moldadores das representações simbólicas e os estímulos emocionais é enorme. Sendo assim, é extremamente sensível para o ser humano entender o elo entre os ressentimentos – como a dor, a raiva e o ódio – com o passado e as memórias involuntárias ligadas a ele. Para discutir esse fenômeno e todas as áreas que ele engloba, o livro Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível reúne historiadores, filósofos, literatos e cientistas sociais, que abandonaram o modo de pensar “confortável”, para explorar e refletir sobre a relação entre a memória, o ressentimento, a história e os contextos sociopolíticos.
A obra conta com textos de 24 pesquisadores. As organizadoras da obra são Stella Bresciani, professora emérita e colaboradora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e Márcia Naxara, professora livre-docente do Departamento de História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista (FCHS – Unesp). A idealização do livro ocorreu entre uma conversa sobre a insatisfação em relação a certas metodologias que tratam assuntos da historiografia ignorando diversos fatores.
Dividido em duas partes, Memória e (res)sentimento apresenta o modo que a história e a memória se relacionam e são usadas como forma de lembrança e esquecimento do passado. O estudo é feito a partir de diversas áreas, tais quais a filosofia, as ciências humanas e a literatura. Além disso, a obra discute o conceito de ressentimento criado a partir de nossas memórias e apresenta-o como o pivô fundamental para a tese apresentada, fazendo paralelos entre esses ressentimentos e contextos e demandas sociopolíticas.
Esses sentimentos negativos não se resumem apenas à dor, à raiva e ao ódio. Destaca-se o ressentimento da “humilhação” e do “medo” como importante na construção política do passado, dando sentido às memórias, ou as esquecendo. A “humilhação” não se trata só da percepção de inferioridade, mas também se relaciona a coisas que guardamos de nós mesmos, dentro de nosso foro mais íntimo, podendo ser, por exemplo, o orgulho ferido. Já o “medo” é o elemento principal do ódio e do desejo de vingança, sendo um dos ressentimentos mais poderosos em revoltas de populações oprimidas. Em seu texto, Pierre Ansart discute o que esses fenômenos acarretam aos coletivos políticos: “para um grupo, a ideologia política, designando claramente os alvos do ódio e do desprezo, pode fornecer aos membros do coletivo um reforço da autoestima e da segurança interior. Esta dinâmica geral é encontrada nos grandes grupos, como se vê nas múltiplas formas de nacionalismo”. Dessa forma, se são alimentados o amor-próprio dos integrantes e a criação de vínculos entre os indivíduos, alertando que esses ressentimentos podem vir a ser uma arma poderosa para demagogos, que usam da solidariedade entre essas pessoas para atingir seus fins políticos.
Ao definir a memória e a história como instrumentos analíticos dos aspectos sociais do passado, Memória e (res)sentimento explora o elo entre as duas em sua primeira parte, discutindo o modo como a história se apossou das memórias, valendo-se delas para oferecer suporte documental para suas narrativas, ditando, assim, as suas formas. Além disso, a obra escancara como esses diversos formatos da memória afetam a maneira por que enxergamos o passado e seus diferentes acontecimentos. Desse modo, causando o ressentimento no indivíduo – mesmo que a contragosto –, pois as memórias produzidas pela história e os sentimentos negativos se acercam.
Ainda, a obra aborda como a ligação entre a memória, a história e o ressentimento afeta o Brasil e a maneira que a população vê e sente o passado. Atravessando diversos pontos do nosso mapa, a obra discute de que modo a elite pensante brasileira excluiu as principais memórias de nosso país – as lutas de grupos de minoria (povos indígenas, negros, trabalhadores, estudantes etc.) –, deixando-nos em um “país sem memória”. Nesse ponto, a forma que a arquitetura oitocentista expressa os sentimentos políticos é debatida, usando como exemplo construções em homenagem à Independência brasileira, e também a maneira como esses monumentos sofreram a alteração de seus propósitos originais segundo a visão de quem estivesse no poder, cada um reatribuindo novos significados aos monumentos. Além disso, o livro apresenta que não só a memória coletiva do país é apagada, como também a individual, ao discutir, através de testemunhos, a forma que pessoas mais velhas têm suas vozes perdidas por uma cultura “original” criada em nossa sociedade, que divide os valores e constrói um muro entre as gerações.
Memória e (res)sentimento oferece um panorama diferente para olhar para as terras incertas da historiografia e de nossas relações sentimentais com o passado, levando o leitor a descobrir coisas que guarda de si próprio. Além disso, o livro é de extrema importância no atual contexto em que vivemos, no qual a nossa cultura e história se veem cada vez mais ameaçadas pela aniquilação. O texto visita diversos períodos históricos, trazendo teóricos clássicos da filosofia, da literatura e das ciências sociais, como Max Scheler, Sigmund Freud, Walter Benjamin, Ludwig Wittgenstein, Marcel Proust, Henri Bergson, Friedrich Nietzsche, entre outros. A coletânea é indispensável para pesquisadores e estudantes das áreas de história, ciências sociais e filosofia.
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Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível
Organização: Stella Bresciani e Márcia Naxara
ISBN: 852-68-068-74
Edição: 2
Ano: 2004
Páginas: 552
Formato: 22 x 15,5 x 3 cm