Por Luisa Ghidotti Souza
Expressões como “empreendedorismo”, “livre mercado”, “reforma”, “privatização” tomam conta da imprensa há décadas. Entender como a linguagem é ferramenta essencial na manutenção da ideologia neoliberal é a proposta do estudo do pesquisador francês Thierry Guilbert em As evidências do discurso neoliberal na mídia, lançamento da Editora da Unicamp, que contou com a tradução de quatro especialistas em análise de discurso, todos vinculados ao PoEHMaS (Política, Enunciação, História, Materialidades, Sexualidade), centro de pesquisa do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Mónica Zoppi é um deles, assim como é autora do “Prefácio à edição brasileira”, que aproxima as considerações de Guilbert sobre a França ao contexto político latino-americano:
“A análise do discurso, na condição de disciplina que aborda o funcionamento social da linguagem e a determinação histórica dos processos de significação, fornece o marco conceitual apropriado para a reflexão teórica e a análise empírica do discurso neoliberal na conjuntura atual.”
Esta obra conta também com uma “Nota ao leitor brasileiro”, em que o autor destaca a potencialidade de suas análises para além do contexto francês. Constata que “o papel ativo do discurso na mídia é certamente o mesmo em outros países, como no Brasil; as reformas neoliberais ocorridas nos últimos anos e as reações das pessoas, infelizmente, mostram-nos a relevância e a atualidade deste livro.”
O estudo apresenta como o neoliberalismo, ao longo dos anos, se apropria da opinião pública para colocar-se como a única via possível diante das crises capitalistas. Guilbert baseia-se em uma análise da mídia francesa, mas a obra pode ser instrutiva para leitores de qualquer país capitalista, uma vez que as estratégias empregadas são muito semelhantes: a repetição de termos e temas da economia neoliberal, diariamente, por longo período de tempo, faz com que as propostas do neoliberalismo sejam naturalizadas. Tal discurso passa a fazer parte da opinião popular, restringindo as possibilidades de uma visão crítica das conjunturas.
Não há dúvidas de que uma das características desta obra é ser atual. Os dados analisados têm mais de 10 anos, mas os procedimentos utilizados pelo discurso neoliberal se mantêm os mesmos em 2020. Afinal, o que o sustenta são as retomadas constantes das mesmas afirmações ao longo do tempo. A estratégia da repetição de ideias, com a constante retomada dos mesmos termos, tem o efeito de transformar crenças em “evidências”. Ou seja, a mídia trabalharia com opiniões irrefutáveis, que não expressariam o pensamento do jornalista, mas sim uma “crença coletiva”. Assim, as ideias neoliberais de que o governo e o mercado devem estar apartados, de que reformas trabalhistas e previdenciárias são inescapáveis e de que a privatização é a saída mais acertada, passam a ser entendidas como via única, como se o caminho natural da história global fosse o mercado neoliberal.
“Os termos discurso neoliberal (doravante DNL) e discurso econômico serão considerados aqui como intercambiáveis. Eles significam um conjunto de enunciados mais ou menos coerentes, que têm em comum a promoção de uma visão empreendedora e puramente econômica da vida e de todas as atividades humanas.”
Para explicar como o neoliberalismo se naturaliza pela continuidade discursiva, Guilbert toma como exemplo a unificação da Alemanha. O momento ficou marcado na história como “a queda do muro de Berlim” e a “ruína do bloco soviético”, nominalizações que ficaram cristalizadas e que representam apenas um ponto de vista sobre o ocorrido. A maneira de contar um fato e a repetição das mesmas estruturas nominais ao longo dos anos têm o efeito de apresentar o neoliberalismo “como o único sistema econômico que funciona.”
O livro segue caminho inverso, analisando linguisticamente o discurso neoliberal e mostrando que ele não tem consistência, muito menos está pautado pela razão. Sua eficácia está em neutralizar os debates, construindo um espaço ideológico que “não aparece nos meios de comunicação como discurso, mas como falas esparsas provenientes do senso comum ou de leis econômicas estabelecidas e indiscutíveis”. Para explicar como isso ocorre, Guilbert faz uso do conto “A carta roubada”, de Edgar Allan Poe. Na narrativa, “o ministro D., que roubou a carta comprometedora para o rei, escolheu, para escondê-la da forma mais segura, colocá-la em evidência, à vista de todos”, sob uma aparência de papel envelhecido e irrelevante. Com isso, os investigadores do caso, por mais que “utilizem métodos comprovados, a veem, mas nenhum a enxerga”. Algo semelhante ocorre com o discurso neoliberal.
“O DNL está bem presente, e até onipresente, principalmente na maioria dos jornais escritos: nós o vemos, o lemos, o absorvemos, mas não o percebemos. A questão então é: por que não o percebemos? Como esse discurso ideológico consegue se apresentar como evidente?”
As muitas análises apresentadas neste livro desfazem a naturalização do neoliberalismo, com o objetivo de “mostrar alguns dos meios discursivos mais importantes e fornecer ao leitor ferramentas para aguçar sua vigilância crítica e para descobrir outros procedimentos por si só.”
Trata-se, portanto, de uma obra que demonstra com maestria a relevância da análise do discurso e suas ferramentas. É uma fonte rica não apenas para o pesquisador da linguagem, mas também para leitores em geral, pois desvenda, de maneira simples e direta, quais são os pilares das sociedades capitalistas contemporâneas e como relações políticas e sociais são articuladas pelos processos de dissimulação midiáticos.
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Título: As evidências do discurso neoliberal na mídia
Autor: Thierry Guilbert
Tradutor: Guilherme Adorno, Luciana Nogueira, Luís Fernando Bulhões Figueira e Mónica G. Zoppi Fontana.
ISBN: 978-65-86253-19-1
Edição: 1ª
Ano: 2020
Páginas: 144
Dimensões: 14×21