Por Bianca Vasconcellos Krauze Silva
Em O amor da língua, o consagrado linguista francês Jean-Claude Milner alcança novos pontos de discussão na intersecção entre linguística e psicanálise, utilizando-se do conceito lacaniano de lalangue (traduzido por lalíngua ou alíngua) para dimensionar as relações entre língua e desejo.
“Lalangue é do domínio onomatopaico, isto é, não mais de uma língua arbitrária, mas motivada. Esse fato é interessante porque lalangue introduz a conseqüência na linguagem, introdução mediada pela figura materna.” (GÓIS et al. Lalangue, via régia para captura do real)
Milner utiliza-se da lalíngua para conseguir explicar como o inconsciente está envolvido dentro da língua e da linguagem: o bebê é movido pelo desejo de comunicar-se com a mãe e o faz por meio da lalação, ou seja, ele usa a repetição onomatopeica para suprir suas necessidades, fisiológicas e psicológicas. A lalíngua é, portanto, o único conceito que tem a capacidade de sustentar uma univocidade da língua.
Na obra de Lacan, o real é dado como impossível, uma vez que o sujeito linguístico é constituído em uma estrutura que tem a capacidade de suportar a falta e que resiste à simbolização. Para que o livro de Milner possa ser concebido e consolidado, o autor inicia o texto com a necessidade de esclarecimento tanto do conceito do real da língua quanto dos lugares de exclusão necessários para conseguir delimitar seu objeto de estudo .
“Mas o que haveria de surpreendente na tentativa de, no sentido próprio do termo, domesticar esse real através dessa arte de amar chamada gramática e dessa ciência chamada linguística?”
Milner aponta quatro pontos essenciais a fim de estabelecer esse “real” na ordem do calculável, para que sua análise seja possível. O primeiro ponto é “constituir a língua como um real”, ou seja, compreender que a língua é a causa dela mesma, tendo o signo como mestre de si mesmo. O segundo é “constituir a língua como um representável para o cálculo”; essa representação é dada por meio da formalização da língua, distinguindo cada segmento da língua (signo) pela sua identidade e unicidade.
O próximo ponto que o autor aborda é o ato de considerar o ser falante como “um ponto sem divisão ou extensão”, ou seja, a ausência de passado, futuro, consciente e inconsciente, cujo único desejo é a enunciação. O último ponto colocado por Milner é considerar a multiplicidade dos seres falantes, fazendo-se necessários dois pontos para efetuar uma comunicação: um ponto de emissão e outro de recepção.
A partir do estabelecimento desses pontos, o linguista explica os conceitos de língua e linguagem: as línguas são concebidas como conjuntos de realidades, e a linguagem como “um ponto a partir do qual as línguas podem ser reunidas num todo — mas um ponto ao qual se conferiu extensão”. A cisão da língua é dada pelo equívoco: quando nos deparamos com a homofonia, homografia e homossemia, encaramos o duplo sentido das palavras, já que partimos do conceito da unicidade de cada palavra.
Saussure é recuperado para a sustentação da fundamentação teórica sobre o equívoco e a multiplicidade da língua: “a língua é uma forma, e não uma substância a fórmula que resguarda o idêntico, cabendo à substância da língua revelar, afinal, o que ela é: o não idêntico a si.” A delimitação final do objeto de estudo de Milner é descartar as proposições que impeçam que a língua seja tratada como “Una” e introduz o único conceito que pode dar conta desse univocidade ㅡ a lalangue.
Jean-Claude Milner levanta o questionamento do que seria necessário para designar a língua tanto como objeto de uma ciência como um objeto de amor e, baseado neste questionamento, ele expõe três teses:
“— quando se diz amar a língua, é propriamente de um determinado amor que se trata;
— a língua que está aí em causa é justamente aquela que a linguística tem de conhecer;
— é por esse entrecruzamento que se pode descobrir o ponto no qual o desejo vem corromper uma ciência humana; ponto em que, estando alerta, é possível notar que se entrelaça uma relação inteligível com uma teoria possível do desejo.”
Milner chega ao cerne da intersecção entre linguística e psicanálise, desenvolvendo a teoria freudiana de que a existência da língua decorre da existência do inconsciente, possibilitando a definição de um ponto em que a língua e o desejo inconsciente articulem-se entre si.
O livro abre caminhos largos para a compreensão dos assuntos complexos que aborda, e os estudos de Milner enriquecem o debate a respeito da influência do inconsciente na língua, iluminando o protagonismo do desejo na linguagem.
O amor da língua
Autor: Jean-Claude Milner
Tradutor: Paulo Sérgio de Souza Jr.
ISBN: 978-85-268-098-02
Reimpressão: 1ª – 2016
Edição: 1ª
Ano: 2012
Páginas: 128
Dimensões: 14×21