Hibridez e interdisciplinaridade nas ciências humanas: Como descolonizar um campo científico

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Por Luisa Ghidotti Souza

“[Este livro] é uma aposta na comunicação e na incomunicação simultaneamente, romper e decepcionar as expectativas e ordens do campo científico, tudo para entrar em algo que talvez, só talvez, mas possivelmente, se possa constituir no único modo de comunicação intercultural viável.”

O livro Raízes e interpretação: Ensaios transdisciplinares sobre literatura e ciências humanas, publicado pela Editora da Unicamp em 2019, é resultado da tradução para o português de um extenso trabalho elaborado em espanhol, construído pela parceria internacional entre três instituições públicas de produção científica: a Universidade do Vale do Sapucaí (Univás) – Pouso Alegre (MG), Brasil; a Universidad Central Marta Abreu de Las Villas – Santa Clara, Cuba; e a Universidad de Valparaíso (UV) – Valparaíso, Chile.

Elaborado a partir de uma proposta de Eni Orlandi (linguista, escritora e professora, pioneira nas pesquisas em análise do discurso no Brasil) aos organizadores da coletânea, situados “um em cada esquina da América do Sul (Cuba e Chile)”, o projeto contribui para a circulação dos estudos em teorias da linguagem pela América Latina, promovendo um lugar de reflexão que relacione e procure compreender as culturas chilena e cubana. Para isso, analisam-se obras literárias e seus autores de uma maneira interdisciplinar, sempre em relação com áreas como história, sociologia, filosofia, antropologia e linguística, com a intenção de observar a construção das identidades nesses países a partir de diferentes lugares de produção de conhecimento.

Os 14 textos que constituem o livro exploram fenômenos importantes na formação literária desses dois países, constituindo um espaço teórico que analisa as relações entre cultura e identidade ao observar como a colonização europeia interferiu nessa trajetória.

“Somos parte de um sintagma indelével, o da analogia estética que acaricia e se entrelaça desde o Barroco, a ilustração e a Modernidade Desenvolvimentista, acoplando-se com essas correntes culturais, mais do que sendo devorado por elas, entre ditaduras militares e colonialismo cultural; tudo parte do mesmo emaranhado de nós, do mesmo erotismo como desejo da palavra e do rito, porque a violência colonial, que se revela na cultura e no bombardeio genocida, é ao menos reconhecível, e porque a academia latino-americana em ciências humanas se submete à jaula bibliométrica, sem protestar, sem gozar e sem pausa.”

É com foco na interculturalidade que esta obra se desenvolve, como uma maneira de, viabilizando a diversidade num contexto acadêmico, superar as homogeneidades que foram atribuídas aos países da América Latina em suas representações. Para isso, ao longo do livro, são destacadas personalidades literárias, como o poeta cubano Modesto San Gil, os personagens do clássico Caníqui, de José Antônio Ramos, e as biografias de Aurora e Hildegart Rodríguez. Essas são figuras que não apenas marcaram a memória coletiva das comunidades em que as biografias foram veiculadas, mas também se tornaram pontos-chave para o resgate histórico das identidades que permeiam e constroem tais comunidades, de maneira a criar um espaço em prol do encontro e da intersecção de diferentes evidências para a reconstrução das narrativas das nações em questão.

Além disso, a coletânea também apresenta textos que pensam as identidades cubana e chilena a partir de fenômenos linguísticos, evidenciando os processos históricos que levaram à constituição desses países e de suas línguas. Por exemplo, a influência da métrica europeia na poesia de Cuba e a apropriação cubana das tradições orais das Ilhas Canárias.

Ainda assim, quando não tratam de um personagem ou de fenômenos históricos específicos, os artigos da coletânea exploram a intersecção entre teorias como etnografia e poesia, antropologia e literatura, produção textual e produção artística, sempre no intuito de evidenciar como os processos históricos de colonização e descolonização desses países promoveram, de maneira direta ou indireta, a multiplicidade, a interculturalidade, a mestiçagem e a pluralidade – social e linguística – na formação identitária dos sujeitos cubanos e chilenos.

Esse teor interdisciplinar da obra é observável no último capítulo, por exemplo, em que, por meio do resgate da vida da autora Hildegart Rodríguez – assassinada pela própria mãe, em 1933, por não ter se tornado a cientista moralista que ela projetara –, estabelece-se a discussão sobre a formação da intelectualidade e da identidade feminina em um contexto histórico em que as mulheres estavam apartadas dos espaços de produção do conhecimento. Outros capítulos da coletânea abordam assuntos pontualmente teóricos, como as influências da obra de Martin Heidegger em contraposição às de Charles Taylor, no capítulo 11, e as relações entre semiótica e comunicação como paradigmas contemporâneos, no quarto capítulo.

Assim, as temáticas que constituem a coletânea estão todas em redor de recortes de personagens, momentos históricos, fenômenos sociais e teorias científicas que buscam entender como se deu a constituição cultural dessas populações que viveram intensos conflitos de investidas colonialistas e depois imperialistas e são conhecidas por estabelecer resistência a esses movimentos de dominação política. O que o livro nos mostra de inédito é que, dentro dessa conflituosa trajetória, ambos os países apresentam grande quantidade de material científico e literário produzido e mostram-se potenciais influentes na produção de conhecimento, o que seriam se não fosse a inferioridade política que lhes foi atribuída ao longo da história.

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Raízes e interpretação – Ensaios transdisciplinares sobre literatura e ciências humanas

Organizador: Ana Iris Díaz Martínez e Miguel Alvarado Borgoño

ISBN: 978-85-268-1486-8

Edição:

Ano: 2019

Páginas: 416

Dimensões: 14×21

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