Conversamos com dois pesquisadores do Cecult: Silvia Lara, que atuou na produção da coleção de 2004 a 2011, e Rodrigo Godoi, atual coordenador da Várias Histórias.
Texto: Luisa Ghidotti Souza; Editora da Unicamp.
Há 20 anos, o Centro de Pesquisa em História Social da Cultura (Cecult) lançou Orfeu de Carapinha, o primeiro livro da coleção Várias Histórias. A obra resgata a trajetória de Luiz Gama, negro escravizado e, posteriormente liberto, que atuou no movimento abolicionista na cidade de São Paulo até sua morte, em 1882. O livro de Elciene Azevedo deu início à coleção que se tornou um dos maiores lugares de divulgação de historiografia social brasileira. Desde então, seus títulos exploram questões da história social do Brasil, tornando-se um espaço de divulgação dos resultados das pesquisas da área numa perspectiva que evidencia recortes importantes da trajetória do país.
Para comemorar os 46 títulos publicados em duas décadas, resgatamos as memórias da coleção. Para isso, entrevistamos Rodrigo Camargo de Godoi, professor do Departamento de História do IFCH-Unicamp, pesquisador do Cecult e atual coordenador da coleção Várias Histórias, assim como Silvia Hunold Lara, uma das fundadoras do Cecult e atual professora colaboradora do Departamento de História do IFCH-Unicamp.
O propósito geral da Várias Histórias, segundo Godoi, é de tornar pública a produção acadêmica da área de História Social do Programa de Pós-graduação em História. Dessa maneira, a coleção serve como um ponto de encontro entre os pesquisadores do Centro, responsáveis pela gestão da coleção, e as pesquisas desenvolvidas. A visibilidade que essas produções da área recebem com a organização da coleção fica evidente quando, por exemplo, o título Escritos da liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil oitocentista, de Ana Flávia Magalhães Pinto, é indicado, em 2019, a finalista do 5º Prêmio ABEU.
A estreita relação entre pesquisas realizadas no IFCH e a sua divulgação – possibilitada pela publicação dos livros – é um dos pressupostos básicos da coleção e também do Cecult, nascido no “contexto de institucionalização de centros de pesquisa na Unicamp”, nas palavras de Rodrigo Godoi. Assim, a coleção integra a produção do centro de pesquisa, dando visibilidade aos estudos para a comunidade acadêmica.
Na entrevista com os professores fica evidente a preocupação de estabelecer vínculos entre a produção historiográfica e os sujeitos atuantes em diferentes contextos históricos do país.
Editora: A coleção Várias Histórias tem origem no Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, o Cecult, criado em 1995. Poderia nos contar um pouco sobre o Cecult e nos dizer como as atividades de pesquisa do centro se relacionam com a coleção ?
Silvia Lara: O Cecult nasceu por iniciativa de um grupo de professores do Programa de Pós-Graduação em História, que tinham várias afinidades teóricas e pessoais, e decidiram desenvolver projetos coletivos de pesquisa e investir na formação de pesquisadores, envolvendo alunos de graduação e pós-graduação. Começamos com um tema clássico da História do Brasil: o da formação da nação e das características atribuídas aos brasileiros e à sua cultura. Depois, seguimos abordando os conflitos sociais em suas diversas manifestações, buscando estudá-los a partir de recortes geográficos (como no caso de bairros do Rio de Janeiro, por exemplo) ou temáticos (como os embates em torno das várias formas de cura, do que pode ser considerado direito ou justo, etc). Nossos últimos projetos versaram sobre questões ligadas à cidadania e ao modo como escravidão e liberdade estão misturadas nas relações de trabalho. Em vez de abordar esses temas a partir das ideias ou das instituições, nosso olhar focalizava (e ainda focaliza) os sujeitos sociais: estamos interessados em compreender as diferentes experiências dos diversos grupos sociais em um dado contexto histórico, em examinar como eles se confrontam e, particularmente, como os trabalhadores (escravos, libertos ou livres) viveram e pensaram a realidade em que viviam.
A coleção Várias Histórias nasceu poucos anos depois da criação do Cecult, como um canal de divulgação das dissertações e teses produzidas, e para a publicação de coletâneas de artigos resultantes destes projetos.
Editora: Quais os objetivos das publicações, tanto em nível de contribuições acadêmicas quanto no âmbito social?
Rodrigo Godoi: Eu acho que as temáticas abordadas em muitos dos livros da Várias Histórias, sobretudo, a história da escravidão, a história dos trabalhadores, a história do racismo, a história dos movimentos sociais, fazem com que eles atinjam um público amplo. Atualmente, o maior exemplo de livro que tem um impacto considerável para além da universidade, no âmbito dos movimentos sociais, é, sem dúvida, o livro da Ana Flávia Magalhães Pinto, Escritos de Liberdade. O livro é um sucesso, por falar diretamente para um público mais amplo, sobretudo o movimento negro. Isso porque ele vai ao encontro de muitas questões que são bastante importantes à população de ascendência africana no Brasil.
Editora: Esses trabalhos têm influenciado, de alguma maneira, o Ensino Médio? Como se lida com a história dentro da escola?
Rodrigo Godoi: Se partirmos do princípio que a coleção é um sucesso editorial, que atingiu 46 títulos, já caminhando para o 47º que deverá ser lançado ano que vem, e se ponderarmos que esses livros atingiram, em 20 anos, muitos estudantes que hoje são professores, é possível sustentar que a coleção pode sim ter um impacto considerável na educação básica. Ainda que possa ser difícil dimensionar em números absolutos, por meio da formação de professores os livros da coleção seguramente foram relevantes nessas últimas duas décadas também no Ensino Médio.
Editora: Quais as principais áreas de estudo abrangidas pelas publicações da coleção?
Silvia Lara: A coleção sempre publicou títulos ligados à história da escravidão, da abolição, da cultura negra. Em todos eles, as dimensões das lutas contra a dominação e contra o racismo, em vários contextos históricos, foram abordadas. Eu diria até que não há como fazer história do Brasil sem que esses temas estejam presentes, de forma direta ou indireta. Mais recentemente, a coleção passou a incluir temas da História da África — há um título que acaba de sair, Médicas sacerdotisas, e uma coletânea, com o título África, Margens e Oceanos, ainda em aberto, que deve ser publicada no ano que vem. Isso tem relação com a mudança na própria historiografia brasileira, que passou a integrar a África em sua maneira de fazer história. Não se trata simplesmente de introduzir a história da África ou da cultura afro-brasileira no rol de “disciplinas” dos cursos de História — e isso aconteceu no início, por pressão dos movimentos sociais e como resultado de suas conquistas legais e institucionais, como no caso da lei 10.639/2003 —, mas de constatar como, ao deslocar a Europa do centro da história, tudo muda: cronologias, conceitos e abordagens são postos em questão. Essa renovação da historiografia começa a aparecer na Várias Histórias e poderá render bons frutos ao circular pelos cursos de graduação e pós-graduação do país.
Editora: Médicas Sacerdotisas está situado na área da história da cultura e se associa ao tema da escravidão. Qual é a relação dessa obra com a historiografia africanista?
Rodrigo Godoi: A lei 10.639 de 2003 instituiu o ensino de história e cultura afro-brasileira no Brasil. Creio que essa legislação é importante, pois, de certo modo, ela também ajudou no processo de institucionalização de um campo de estudos. Consequentemente, é preciso prover essa área com estudos, livros, artigos, ou seja, criar uma biblioteca de estudos africanos no Brasil. A Várias Histórias procura contribuir nesse sentido, sendo Médicas sacerdotisas o primeiro título de História Social da África na coleção. Além dele, o próximo livro que vamos lançar, cujo título provisório é Margens e oceanos: Capítulos em história social da África, é uma coletânea organizada pela professora Lucilene Reginaldo, do Departamento de História da Unicamp, e pelo professor Roquinaldo Ferreira, da Universidade da Pensilvânia. Margens e oceanos será um livro que continuará o legado do Médicas Sacerdotisas. E é importante salientar que a pesquisa produzida no Brasil em História da África é respeitada internacionalmente pela qualidade e pela abordagem.
Editora: Alguns títulos são um sucesso editorial e tiveram várias edições, como é o caso de A capoeira escrava, de Carlos Soares, com publicação em 2001, segunda edição em 2004, sendo ainda reimpressa em 2008. Do seu ponto de vista, o que fez com que títulos como esse atraíssem tanto interesse?
Rodrigo Godoi: Essas mudanças estruturais no modo de se contar a história da escravidão no Brasil são um ponto fundamental para que a coleção atraísse tanto interesse. Não só a história da escravidão, mas a história social do trabalho no Brasil foram fundamentais para que esses livros atingissem as marcas que atingiram.
Editora: Quando foi lançado o primeiro título, em 1999, a coleção inseria-se em um contexto político, social e histórico brasileiro muito distinto do que vivemos hoje. Como a atual conjuntura influencia a coleção? Quais são as perspectivas para o futuro da coleção?
Silvia Lara: Em vinte anos, a universidade mudou muito e a sociedade brasileira também. Os desafios hoje são muito maiores do que antes. Há uma desconfiança social em relação à pesquisa acadêmica: as pessoas de fora da universidade não sabem direito o que fazemos aqui e para que serve o que fazemos. No último ano, particularmente, há um movimento concertado de destruição da universidade, com restrições de programas, cerceamento ao livre pensamento, etc. A coleção não pode abrir mão do rigor acadêmico, mas precisa enfrentar o desafio de se fazer lida em um mundo como esse.
Editora: O valor científico da Várias Histórias é indiscutível, não apenas pelo número de publicações e pela pluralidade temática, mas também pela presença dos livros tanto no ensino de graduação quanto no de pós-graduação. Só em 2018 foram publicados dois títulos sobre resistência negra. Chegando agora ao final desse conturbado ano de 2019, como o senhor avalia o impacto da coleção na educação formal brasileira?
Rodrigo Godoi: *suspiro* Monteiro Lobato, que foi um grande editor, dizia que um país se faz com homens e livros. Se isso for realmente verdade, sua pergunta é uma questão aberta. A coleção Várias Histórias é resultado de um conjunto de esforços. Poderíamos elencar, entre eles, os esforços de um programa de pós-graduação de excelência e de um centro de pesquisa, mas, acima de tudo, da universidade pública, que no caso brasileiro é quem produz conhecimento nas mais diversas áreas. A despeito de todos os ataques que a universidade vem sistematicamente sofrendo nos últimos meses, não há dúvidas que nos últimos anos ela se tornou mais plural, buscando, por meio de ações afirmativas, refletir a diversidade da qual é composta a sociedade brasileira. O impacto dessas políticas sobre a produção do conhecimento é enorme e deve ser saudado como algo extremamente positivo. Assim, eu emendaria o Lobato, dizendo que um país pode sim ser feito de homens e livros, mas também é feito de mulheres, negros e negras, indígenas, gays, lésbicas e todos os livros por elas e eles lidos e escritos.
Confira os títulos da coleção no site da Editora da Unicamp: http://www.editoraunicamp.com.br/colecoes/7/varias-historias