por Everaldo Rodrigues da Silva Junior
Existe uma imagem, estabelecida no senso comum, do homem medieval constantemente assombrado por forças maléficas, pelas tentações demoníacas e pelo medo que a figura de Satanás e seus asseclas gerava. Tal imagem se reproduziu ao longo do tempo e levou a interpretações errôneas da consciência cristã na Idade Média. Na verdade, até meados do século XIII, a figura do diabo e dos demônios em geral não era um problema para o pensamento cristão, configurando basicamente uma dinâmica de oposição necessária à salvação humana. Os anjos caídos só despertavam interesse escolástico devido ao que representavam nas relações espirituais, já que exprimiam em si a condenação final. Sua existência não lhes dava capacidade de agir sobre a natureza e consequentemente sobre o homem, o que significa que não tinham poder de transformar a realidade. Qualquer realização pavorosa de tais seres não passava de ilusão. Os demônios eram, no fim das contas, ferramentas divinas e não podiam fugir de tal propósito.
No entanto, em determinado momento da Idade Média, pode-se dizer que o demônio ganhou outro status. Alçado à categoria de inimigo número um da fé cristã, passou a ter poderes de influência sobre a alma humana e a ser capaz de estabelecer aliança com os homens para, a partir daí, oferecer perigo real à Igreja e às pessoas. Tal alteração no caráter do diabo modificou o conceito de heresia: antes eram as opiniões que se opunham à cristandade; agora passava a incluir atos resultantes da associação entre os homens e os demônios, atos que tinham efeitos no mundo real, no corpo e na mente das pessoas. Surgiam então os “sacramentos satânicos” e os “sabás”, além da noção de “pacto”, que ofereciam uma explicação tanto à relutância humana em obedecer às soberanias terrenas, ou seja, à governança de reis e rainhas, quanto à sua fragilidade espiritual, que serviria como um convite às influências maléficas e à possessão. Tudo isso impactou os processos inquisitórios e contribuiu para que a famosa “caça às bruxas” ganhasse dimensões assombrosas.
Foi buscando compreender os processos que levaram a essa mudança na condição do demônio na teologia cristã que Alain Boureau buscou documentos medievais, bulas papais e registros da Inquisição. O estudo gerou Satã herético: O nascimento da demonologia na Europa medieval (1280-1330), obra lançada pela Editora da Unicamp em 2016. O livro ilumina recantos da “Idade das Trevas”, mais especificamente o período destacado em seu título, marcado pelo surgimento da demonologia. Ao reconstituir os diversos debates que levaram a novas ideias a respeito das interações entre homens e as forças sobrenaturais, Boureau expôs a suscetibilidade de tais ideologias aos poderes vigentes, mantendo sempre em vista o contexto da época, de disputas e inquietações a propósito das soberanias — tanto as terrenas quanto as divinas.
É essencial para o início dessa nova obsessão demonológica a publicação, entre 1326 e 1327, de uma bula papal, por João XXII, chamada Super illius specula. O papa controverso, ficou famoso por seu envolvimento político em diversos países, buscando promover os interesses da Igreja Católica (e, posteriormente, por ser alvo das críticas de Guilherme de Baskerville em O nome da rosa, de Umberto Eco). A bula, publicada depois de uma intensa consulta a especialistas em teologia, cânone e civilismo, determinava o direito, por parte da Igreja, de processar e perseguir praticantes de magia com ligações satânicas, além de proibir consultas a demônios e a utilização de objetos consagrados ao mal. Era a primeira vez que se mencionava uma aliança maligna entre demônios e humanos. Em seu livro, Alain Boureau traça todo o caminho que levou a essa determinação, explicando que a bula “rompia de modo brutal com a antiga tradição da Igreja […] que tratava os sortilégios e os feitos de bruxaria ou de magia como ilusões diabólicas, sem realidade efetiva”.
A bula surgia em um momento de inquietude para Roma. A sede da Igreja havia sido transferida para a cidade de Avignon em 1309 devido às divergências com o monarca Filipe, o Belo, Rei da França, iniciando o chamado Papado de Avignon, que durou até 1377. Também ocorriam constantes trocas de acusações de influência satânica entre os católicos e os monges franciscanos espiritualistas. Para os franciscanos, por exemplo, o Papa era o próprio Anticristo. Tais antagonismos forçaram o pontífice a buscar uma definição apropriada e bem embasada juridicamente do poder demoníaco sobre o homem. E foi nessa tentativa de desmoralizar adversários políticos, fossem eles nobres ou eclesiásticos, que a demonologia se desenvolveu. Torna-se evidente a partir de então a mudança de status da figura do demônio, que de coadjuvante passa a protagonista de toda uma era de supostas ofensas à Igreja. Esse processo levaria, posteriormente, ao endurecimento da Inquisição e dos métodos empregados para a punição dos hereges.
Ao focar em um período de tempo relativamente curto da história católica e da Idade Média, Boureau consegue realçar as tensões feudais, os complôs políticos, os antagonismos entre religiões e seus reflexos nas determinações de novos “bodes expiatórios” na figura das bruxas, sobre as quais recairia a culpa por diversos acontecimentos daquele período, como por exemplo a epidemia de peste negra que se espalhou pela Europa a partir dos anos de 1340. Em meros 50 anos de história cristã, conceitos e tradições foram moldados e descaracterizados, abrindo caminho para a transformação da Inquisição em uma das maiores forças sociais da época e em uma das mais tristes manchas na história europeia.
Satã herético é um documento de suma importância para os estudos historiográficos medievais, pois ajuda a compreender um período crucial para o desenvolvimento da demonologia como uma ferramenta de punição jurídica.
Satã Herético – O nascimento da demonologia na Europa medieval (1280-1330)
Autor: Alain Boureau
Tradutor: Igor Salomão Teixeira
ISBN: 978-85-268-1334-2
Edição: 1ª
Ano: 2016
Páginas: 256
Dimensões: 16×23
Gostei muito da sua análise, Everaldo. Despertou-me grande interesse pelo livro. O uso do demônio pelos poderosos e os acontecimentos que se seguiram, inclusive o endurecimento da Inquisição mudaram os rumos da História. Parabéns!
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Texto incrivel. Aumentou e muito meu interesse pelo assunto.
Parabéns
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