Qual é o gênero dos objetos?

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Por Jessica Moreira Siqueira

Sua amiga está grávida de uma menina, e você quer dar um presente para o bebê. Que tal uma camiseta? Mas só há dois modelos disponíveis: azul com uma estampa do Homem-Aranha ou cor-de-rosa com a imagem de uma princesa. Qual escolheria? Talvez estejamos condicionados a pensar que o rosa é mais delicado e, por isso, deveria ser usado por meninas. Porém, no início do século XX, essa cor era considerada forte e perfeita para os meninos. Esse é apenas um exemplo da arbitrariedade na atribuição de gênero aos objetos nas sociedades ocidentais. Mas será essa a única forma possível de compreender a questão de gênero? Não para a antropóloga Marilyn Strathern, que problematiza essa perspectiva dualista no livro O gênero da dádiva: Problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Melanésia.

A obra apresenta um estudo sobre os povos das Terras Altas da Nova Guiné na Melanésia. No entanto, não se trata apenas de uma etnografia. Retomando trabalhos anteriores sobre essa região, a pesquisadora considera que as relações de gênero foram mal compreendidas. Isso porque as abordagens antropológicas ocidentais entendem o indivíduo como detentor de uma identidade única, o que se contrapõe à visão daquela sociedade.

O tema da dádiva é um dos clássicos da antropologia desde o trabalho fundador de Marcel Mauss, Ensaio sobre a dádiva. Strathern o analisa da perspectiva do gênero e explica que está interessada em uma área do mundo “onde o simbolismo de gênero exerce um papel importante na conceituação das pessoas sobre a vida social”. Na Melanésia, as identidades de gênero não são fixas e nem estáveis. Elas se constituem a partir dos objetos, das ações e relações, que também assumem diferentes gêneros. Na troca de presentes entre dois homens, por exemplo, um deles pode adquirir o gênero feminino.

Ao mostrar como a constituição da identidade melanésia difere totalmente da ocidental, esse estudo, escrito em 1988, refuta a antropologia etnocêntrica e sua crença em concepções universais que seriam aplicáveis em qualquer sociedade. Strathern mostra como as metáforas ocidentais dualistas não se aplicam à Melanésia: os limites ocidentais entre privado e público, feminino e masculino não existem para os povos melanésios que assumem diferentes papéis, ocidentalmente considerados antagônicos. Para explicar esse contraste, a antropóloga utiliza o conceito de divíduo (divisível), elaborado pelo antropólogo McKim Marriott, opondo-o ao de indivíduo (não divisível).

Na introdução do livro, a autora apresenta questões sobre a relação entre as abordagens feministas e antropológicas em uma espécie de estudo descritivo das práticas ocidentais de conhecimento. Em seguida, a obra se divide em duas partes. Na primeira são apresentados os estudos etnográficos melanésios e suas relações com os temas antropológicos e feministas. A segunda descreve as técnicas e estratégias utilizadas na análise das relações sociais das culturas melanésias. Por fim, a conclusão contempla questões feministas (como a da dominação masculina) e antropológicas (como a comparação entre culturas) sob a perspectiva das práticas de conhecimento melanésias.

O gênero da dádiva tornou-se um dos trabalhos de destaque para a antropologia, a literatura sobre Melanésia e os estudos feministas. E, conforme explica a autora no prefácio, essa perspectiva é uma oportunidade de descobrir novas abordagens antropológicas: “Era uma antiga esperança a de que o conhecimento acadêmico de inspiração feminista na antropologia não só transformaria as maneiras de escrever sobre mulheres ou sobre mulheres e homens, mas transformaria também a maneira de escrever sobre cultura e sociedade”. Assim, por meio de uma reflexão sobre o modo de falar do “outro”, repensamos o “eu”, quebrando convicções que pensávamos ser inquestionáveis.

Afinal, por que não escolher a camiseta azul do Homem-Aranha?

O gênero da dádiva - livro

O gênero da Dádiva – Problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Melanésia
Tradutor: André Villalobos

ISBN: 85-268-0721-8

Reimpressão: 3a – 2018

Edição: 1a

Ano: 2006

Páginas: 536

Dimensões: 16 x 23

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