O desvelamento que há no esquecer

Usos do esquecimento - Conferências proferidas no Colóquio de Royaumont

Por Luis Fernando Moreira da Costa

O esquecimento refere-se a um acontecimento específico, singular. Deve-se a isso o interesse dos historiadores em sua busca incessante de nomear e construir memoriais – denominando documentos, monumentos e lugares de memória. Como aponta o filósofo Gianni Vattimo, no entanto, apesar desse esforço, o esquecimento é impossível. Nietzsche, na Segunda consideração intempestiva, de 1874, conclui que, devido ao excesso de conhecimento e consciência histórica, ocasiona uma ausência de criatividade no indivíduo do século XIX. Esquecer é, portanto, necessário para a criação. Porém, como pode ser interpretado da “teoria” do eterno retorno do mesmo filósofo, essa doença histórica deve ser assumida como condição nossa, condição dessa impossibilidade.

Para entender o papel fundador e os usos políticos do esquecimento, a Editora da Unicamp publicou a coletânea dos textos reunidos do colóquio ocorrido em Royaumont, em 1987. Em Usos do esquecimento, o significado e a repercussão desse conceito são destrinchados de modo que novas concepções do termo florescem para manter eternamente transformado o seu sentido. Sua importância é de todo manifesta – afinal, na própria origem da linguagem, há um ponto de esquecimento. Como o linguista e filósofo Jean-Claude Milner destaca no quarto texto da coletânea, “O material do esquecimento”, a origem do signo, surgido do encontro entre o significante e o significado, não pode jamais ser recuperada, de forma que todo uso que fazemos da linguagem implica um esquecimento desse “momento”.

Já no que diz respeito à sociedade, o esquecimento constitui-se como central em sua formação. Desde a estratégia política da anistia, aspecto destacado no texto da historiadora e antropóloga Nicole Loraux, “Da anistia e seu contrário”, até a autocompreensão histórica de uma nação, como no caso da Alemanha pós-nazismo, tema, por sua vez, do texto do historiador Hans Mommsen, “O Terceiro Reich na memória dos alemães”. Nesse caso, todo esquecimento é visto como uma “falha” de transmissão, um apagamento que pode ser intencional.

Um povo deve sua existência à constituição de uma tradição, cujo sentido é delineado pelos valores que a compõe. Em busca de sua construção, há um longo processo de apagamentos e recuperações em que os elementos do passado são adequados para compor esse conjunto coeso. Parte da história é apagada como irrelevante para a unidade desse povo, enquanto outra parte é atualizada por rituais e narrativas históricas. Desse modo, como discutido no texto do historiador Yosef Hayim, “Reflexões sobre o esquecimento”, “não há povo para o qual certos elementos do passado – sejam históricos ou míticos, muitas vezes uma mistura de ambos – não configurem uma ‘Torá’, oral ou escrita, um ensinamento canônico, partilhado, que exige consenso”. Ou seja, é através da memória coletiva que comunidades são formadas e mantidas, compreendendo-se o papel fundador dos mitos.

É com base nesses temas fundamentais que essa coletânea discute a importância do esquecimento e seus funcionamentos em nossa sociedade. Estarmos atentos para seu poder implica não só compreender a nossa história, como também se prevenir dos usos interessados que esse poder tem para grupos específicos.

Usos do esquecimento - Conferências proferidas no Colóquio de RoyaumontUsos do esquecimento – Conferências proferidas no Colóquio de Royaumont

Autor: Yosef Hayim Yerushalmi, Nicole Loraux, Hans Mommsen, Jean-Claude Milner e Gianni Vattimo
Tradutor: Eduardo Alves Rodrigues e Renata Chrystina Bianchi de Barros

ISBN: 978-85-268-1376-2

Edição: 1ª

Ano: 2017

Páginas: 120

Dimensões: 14×21

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