Por Gabriel de Lima
No Brasil, em uma relação de total dependência, a produção cênica ocidentalmente estabelecida sempre esteve associada ao empreendimento colonial lusitano. O molde e a referência pertenciam à pátria de Camões e de Gil Vicente; este último, considerado o pai do teatro português, teve um pouco mais de atenção pelo que a sua obra dramatúrgica tinha como proposição: a incorporação de elementos e personagens populares em sua escrita, seja para estabelecer uma crítica contundente da realidade cívico-moral de Portugal, seja como uma forma de documentar os ritos e costumes que compunham a identidade cultural lusitana. A apresentação teatral em solo brasileiro não se descaracterizou do estilo vicentino, dado que essa presença do popular, uma característica classicamente pertencente ao gênero cômico, continua a ser a sua força motora. Do artístico para o social, a análise do diálogo entre produção cênica e cultura popular suscita também um apontamento de como a sociedade brasileira foi estruturalmente constituída.
A pluralidade do povo não concerne apenas à esfera étnica, sendo que a formação de uma cultura nacional teve como determinante o processo de amalgamento de “manifestações que vieram de culturas muito diferentes umas das outras”. Partindo desses questionamentos, a Editora da Unicamp publica Poética do teatro-folia, um estudo analítico que apresenta as intersecções de uma dita “cultura popular e/ou oral” na dramaturgia brasileira, contribuindo para o “rompimento, de maneira inequívoca, com a pretensa superioridade de uma cultura letrada e institucionalizada”. A obra, escrita por Larissa de Oliveira Neves, centra-se sobretudo na sinalização dessa poética, dos elementos que a constituem e do contexto sócio-histórico envolvido.
Isso posto, a multiplicidade das peças teatrais analisadas torna-se fundamental para uma definição ampla e completa da interlocução direta entre um campo artístico e as manifestações culturais de uma determinada comunidade. Desde o carioca Martins Pena (1815-1848) até o prestigiado dramaturgo paulista Carlos Alberto Soffredini (1939-2001), a autora percorre a história do Brasil Moderno, evidenciando como a “performance popular da terra” foi transportada – em diferentes graus – ou serviu como fonte cultural para a produção cênica em território nacional. Nesse ínterim, emergem, ao longo da obra, as festividades religiosas ou não, os costumes populares e a variação linguística regional e social, que são elementos destacados pela intelectualidade brasileira como constituintes da identidade nacional.
Poética do teatro-folia é organizada em duas partes que discorrem tanto teoricamente quanto por meio de exemplificações sobre essa poética – um tratado artístico firmado não oficialmente entre os teatrólogos brasileiros –, existindo uma preocupação na escrita de Neves para superar o estereótipo de entender o espetáculo popular “‘apenas’ como folclore”. Diante disso, a docente do Departamento de Artes Cênicas da Unicamp pretende explicitar, constantemente, os modos pelos quais as expressões populares são “participantes da formação intrínseca do teatro brasileiro como um todo, lugar que nunca lhes foi plenamente assegurado até hoje”. De forma preliminar, pode-se indicar que a urgência por uma reparação histórica se deva talvez à condição de subalternização conferida comumente às folias.
O empenho é incessante por parte da autora para uma mudança do discurso acadêmico, que passa pelo “estabelecimento da poética do teatro-folia” por meio dos estudos de caso – utilizados, na segunda metade da obra, como modelo central de pesquisa e de documentação artística. Em consonância ao espectro identitário brasileiro – no sentido mais macro do termo –, no qual o “Manifesto Antropófago” (1928) marca a virada ideológica da narrativa oficial sobre a formação étnica da população brasileira, a pesquisadora atenta que “a poética do teatro-folia é uma poética do teatro brasileiro, que se constrói incluindo as referências nacionais, forjadas pela mistura. E, como poética do brasileiro, sabe incorporar, reler, transformar o que lhe é interessante”.
Doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Larissa de Oliveira Neves atua nessa instituição desde março de 2009, especializando-se, durante a sua formação acadêmica, em dramaturgia, história do teatro brasileiro, teoria do teatro e literatura e cultura brasileira. Com base nessa trajetória universitária, a autora de Poética do teatro-folia parte de um âmbito que qualifica e valida as manifestações artísticas, procurando repensar algumas conceituações limitantes e taxativas que ainda imperam na relação da produção cênica nacional com o popular, com as folias.
Ao “desnaturalizar uma situação que parece dada e imutável”, o livro acentua como o processo imperialista de modernização adentrou na crítica teatral, criando hierarquias culturais que marginalizaram os espetáculos não elitizados. O trabalho a ser feito é imenso, e a presente obra pretende dar os primeiros passos dessa caminhada, dando novos sentidos aos fatos concretos e propondo esquematizações teóricas alternativas ao “imperialismo cultural” ocidentalista. A pesquisadora, acertadamente, vislumbra os elementos populares – costumes, literatura oral e ritos comemorativos ou até mitológicos – como redutos singulares de nacionalidade, que têm no diverso a sua força motriz.
Discussões feitas, no século passado, pelas vanguardas literárias são evocadas pela escrita reflexiva de Neves, em virtude de que esse momento histórico registra uma das primeiras investidas decoloniais por parte da classe intelectual brasileira. Mesmo revisitando a produção cênica desde os idos da Independência, a autora, no trajeto das folias para os palcos teatrais, revela com convicção que “há, sim, semelhanças poéticas, mesmo em obras que têm quase 200 anos de distância temporal. Essas semelhanças poéticas se dão no âmbito da projeção da cultura popular e, especialmente, da cultura performática popular brasileira” que moldou e continua a transformar os reais perfis identitários de um povo plural.
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Autora: Larissa de Oliveira Neves
ISBN: 9788526815629
Edição: 1ª
Ano: 2022
Páginas: 312
Dimensões: 14 x 21 cm