Por Beatriz Burgos

“No dia 24 de fevereiro de 2022, às 4 horas da madrugada, horário local de Kiev, a Rússia de Vladimir Putin iniciou uma ampla invasão militar à Ucrânia de Volodymyr Zelensky”, conta Felipe Loureiro, organizador do livro Linha vermelha, lançamento da Editora da Unicamp; assim começaria o complexo conflito entre a Rússia e a Ucrânia que se estende até o momento presente. As raízes das tensões entre os dois países remontam aos seus passados históricos e a questões de ordem sociocultural, econômica e política. A partir de múltiplas perspectivas teóricas, reunindo análises de pesquisadores brasileiros e estrangeiros sobre a guerra, Linha vermelha busca refletir sobre as razões que levaram à invasão, discutindo as causas e a natureza do conflito, além de seus impactos para as relações internacionais no século XXI.

Loureiro é historiador e professor associado do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP), além de coordenador do Observatório da Democracia no Mundo. Publicou a obra A Aliança para o Progresso e o governo João Goulart (Editora Unesp, 2020) e foi pesquisador visitante nas universidades de Brown (2017) e George Washington (2018), nos Estados Unidos. Além de assinar a introdução do livro – em que explica resumidamente o conflito, a analogia com o cruzamento de “linhas vermelhas” e com a Teoria da Perspectiva e descreve a estrutura da obra –, o pesquisador também é responsável pelo capítulo introdutório do volume e pelo capítulo que o fecha. Naquele, oferece um panorama geral da construção das identidades russa e ucraniana a partir da análise de pontos-chave da trajetória de formação desses dois Estados nacionais; neste, “A guerra da ucrânia e as relações Rússia-Estados Unidos: Uma nova guerra fria?”, Loureiro levanta considerações de cunho teórico sobre a natureza do sistema internacional pós-Guerra da Ucrânia, questionando até que ponto seria plausível falar na emergência de uma nova Guerra Fria entre Estados Unidos e Rússia no século XXI.

Afora os capítulos assinados pelo organizador, os demais textos que compõem a obra são de autoria de um completo e diversificado grupo de pesquisadores da área. O volume é dividido em quatro partes, organizando sistematicamente a reflexão sobre o conflito: “Antecedentes”; “A guerra e seus impactos”; “A guerra e o sistema internacional”; e “A guerra e suas implicações de longo prazo para o sistema internacional”. Cada uma das seções, por sua vez, é subdividida em capítulos que refletem sobre temas diversos, dentre eles as características das operações militares no conflito, os efeitos humanitários da guerra e a questão da responsabilização criminal internacional de atores envolvidos. A obra conta, ainda, com um conjunto de capítulos focados na posição de países do Sul Global em face da invasão russa, além de uma parte inteira dedicada às perspectivas de longo prazo abertas pelo conflito no sistema internacional, com destaque para os âmbitos da segurança internacional, da economia política internacional e das relações China-EUA e Rússia-EUA.

No início da obra, o leitor se depara com listas de figuras, gráficos, tabelas e abreviaturas, estas presentes no decorrer de todo o livro, o que facilita, durante a leitura, a consulta de informações-chave e o resgate de qualquer referência necessária. Os mapas, em abundância no volume, informam importantes dados e ilustram os conhecimentos difundidos no texto verbal. Todo esse arranjo acaba por tornar a leitura mais estimulante, completa e acessível para todos os públicos. 

Linha vermelha: a guerra da Ucrânia e as relações internacionais no século XXI é o quarto livro da Série “Discutindo o Brasil e o Mundo”, lançada em 2022 pela Editora da Unicamp. Por meio de um conjunto de obras nacionais e traduzidas, frutos de pesquisas rigorosas e abrangentes, a Série pretende alinhavar discussões recentes em torno da crise da democracia no Brasil e os impactos da ascensão do fascismo no mundo. Com linguagem acessível, as obras refletem sobre o avanço da direita autoritária, a crise do neoliberalismo e os rumos do capitalismo na era digital, o conflito na Ucrânia, temática central da obra organizada por Loureiro, e o embaralhamento da política internacional. Os títulos, portanto, tomam para si o desafio de contribuir com o debate sobre os rumos do Brasil e do mundo a partir da análise de situações políticas e socioculturais concretas – tarefa árdua, em especial quando se examinam episódios vigentes. Sobre isso, aponta Felipe Loureiro, ainda na introdução da obra:

Seja para compreender as causas e os motivadores da guerra, seja no sentido de avaliar suas consequências para a ordem global, a análise de eventos e processos históricos enquanto eles acontecem, como este livro se propõe a fazer com a Guerra da Ucrânia, é tarefa arriscadíssima. […]. Expor-se a esse tipo de empreitada, porém, é tarefa premente, mesmo que algumas das reflexões possam ficar datadas ou até mesmo se mostrarem míopes em futuro próximo. Compreender a natureza e os potenciais efeitos de eventos históricos de grande magnitude é essencial para que atores, grupos sociais e instituições do presente informem-se sobre seu agir. Sem isso, corre-se o risco de ficar ao sabor das marés. Para uma sociedade com tantos problemas seculares e conjunturais a enfrentar, como é o caso da sociedade brasileira, por exemplo, permanecer à deriva de acontecimentos que têm potencialidade para mexer nas placas tectônicas do sistema internacional não deveria nem constituir uma possibilidade a ser aventada. É nesse espírito que este livro foi organizado, buscando ajudar o leitor a navegar nas águas turvas e agitadas da Guerra da Ucrânia.

Assim, diante do cenário em que se encontra o conflito em questão, ainda sem qualquer perspectiva de resolução, Linha vermelha se mostra uma obra premente. Completa e objetiva, extremamente embasada, trazendo finas analogias e conceitos complexos, mas, ao mesmo tempo, acessível na linguagem, Linha vermelha se faz uma obra singular. A reflexão e a análise de um conflito ainda em curso e, em diversos aspectos, tão intrincado como a Guerra da Ucrânia, feitas de forma clara, organizada e concisa, representam um desafio que o título conseguiu vencer com maestria. Há nove meses compartilhamos com o mundo esse momento trágico da história, assistindo aos acontecimentos violentos e destrutivos passarem diante de nossos olhos; Linha vermelha capta a história dessa guerra com as mãos e a destrincha com a ponta dos dedos: com firmeza, mas sempre com cautela para não cruzar a linha.

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