Poesia completa, vol. II – Os poemas perdidos e fascinantes de Emily Dickinson

Por Gustavo Gonçalves

Não pude provar que os Anos tinham pés –

Mas a confiança de que correm

Tenho, de sintomas passados

E séries que se fecharam –

Acho que meus pés têm outros Destinos –

Sorrio dos Anseios

Que eram Amplos – Ontem –

Os de Hoje – pedem mais – 

Não duvido que Quem fui

Foi competente para mim –

Mas algo que se encaixa mal – 

Prova que – vejo – além –

Emily Dickinson

Quando pensamos no cenário poético dos Estados Unidos, o nome de Emily Dickinson é um dos principais a ser lembrado. Autora de cerca de 1.800 poemas, o reconhecimento de seu trabalho veio postumamente, com apenas 10 de seus textos sendo publicados em vida (alguns de maneira anônima). Isso se deu não apenas por seu estilo de vida semirrecluso e por sua aversão à fama. Existia em Dickinson a vontade de que seus textos fossem publicados em livro, porém sua carreira foi marcada por inúmeras recusas, já que seus contemporâneos não a compreendiam e não a sabiam ler.

Dessa forma, os poemas de Dickinson enquadraram-se – ou ficaram perdidos – em fascículos (pequenos folhetos costurados à mão), folhas soltas (folhetos não costurados), poemas soltos, cartas enviadas a pessoas próximas e textos não retidos. Esses fatores fizeram da poeta uma das mais misteriosas dentro da literatura estadunidense, com sua vida e seus trabalhos sendo tópicos de pesquisas e debates até hoje.

Para que os leitores brasileiros possam apreciar os textos de uma das maiores poetas do mundo, por meio de uma parceria entre a Editora da Unicamp e a Editora UnB, nasceu o projeto de um livro que traz a obra completa de Dickinson traduzida para o português. Em 2020, o primeiro volume dessa edição foi lançado. Agora, depois de pouco mais de um ano, o livro Poesia completa, vol. II: Folhas soltas e perdidas, de Emily Dickinson, chega para o público.

Diferentemente de seu antecessor – que traz os poemas presentes em fascículos –, esse volume marca, principalmente, um período (pós-1865) em que Dickinson desiste da ideia de ter seus poemas publicados, parando de reunir seus trabalhos em folhetos costurados. Assim, inicia uma tentativa dela de se publicizar por meio postal – pois a poeta ainda queria se eternizar, tirando seus escritos da gaveta –, e isso se vê pelo número de cartas (com poemas) enviadas por ela, que aumenta nesse período. Além disso, sua forma de escrita começa a mudar – já que sua poesia tinha grande caráter visual ao utilizar os espaços da página. 

A tradução ficou a cargo de Adalberto Müller, doutor em letras-francês e professor de teoria da literatura na Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de livros de poesia, contos e ensaios, ele é responsável por outros trabalhos de tradução de grandes poetas, como e. e. cummings, Francis Ponge, Paul Celan, Rainer Maria Rilke. Ele também é responsável pelo Prefácio e pelas Notas.

O livro tem como referência uma das principais obras sobre os poemas da autora: Emily Dickinson’s poems: as she preserved them, realizada por Cristanne Miller. Em 2018, Adalberto Müller foi convidado por Miller para ser professor visitante na Universidade de Buffalo (Suny), no Departamento de Inglês.

Em seu trabalho, Müller não apenas traz uma tradução que respeita a estrutura original dos poemas de Dickinson, mas também que se mantém fiel aos limites sintáticos e rítmicos da língua portuguesa. No Prefácio, ele apresenta toda a base teórica que sustenta os poemas de Dickinson, assim como a forma “correta” de serem lidos. Ao fazer isso, o tradutor quer explicar as escolhas tomadas por ele ao adaptar os escritos da autora para o português, sem que os textos perdessem o que é fundamental na poética dickinsoniana. Como escreve Müller, ao apresentar as dificuldades desse tipo de tradução: “Diante desse impasse, o tradutor tem duas opções: ou se anula como sujeito, optando por uma tradução que hoje as máquinas de traduzir fazem melhor (a chamada tradução literal), ou encara a tarefa de traduzir um poema em versos com um poema em versos”.

Esse volume é dividido em quatro partes. Em ordem, são: “Folhas soltas”, que apresenta poemas escritos em folhetos que, por Dickinson já ter desistido da publicação, não foram costurados nos fascículos; “Poemas soltos”, que traz escritos que não foram feitos em sets e, em geral, têm datação imprecisa; “Poemas transcritos por terceiros”, textos que não têm origem dos manuscritos de Dickinson, e sim de seus correspondentes; e, por fim, “Poemas não retidos”, compostos por poesias da juventude da autora – recuperadas por familiares – e cartas enviadas por ela. 

Além disso, o livro conta com as Notas, que apresentam aspectos importantes das traduções dos poemas e contextualizam alguns escritos com referências. Algumas das notas dão uma visão totalmente nova às poesias, principalmente quando relacionadas diretamente a Dickinson. O mistério de sua vida, assim como sua aparência – há apenas três imagens da autora –, faz com que os seus leitores, por meio dos poemas, criem e interpretem a história e os fatos da vida da poeta, imaginando seu aspecto físico, suas relações sociais e seus pensamentos íntimos. Para Müller, isso é o que mais torna fascinante a obra de Emily: “na ausência de outros retratos, cada leitor deve criar uma imagem de Dickinson lendo seus poemas e suas cartas”.

Um exemplo da importância de publicações póstumas, Emily Dickinson desperta diversos sentimentos por meio de suas obras, sendo fascinante pelo seu eterno mistério, espaço fecundo para a constante produção de novas leituras. Mesmo não sendo reconhecida em sua época, sua genialidade surpreende até hoje. Como escreveu Helen Hunt Jackson – uma das poucas pessoas que ajudaram e acreditaram em Dickinson – para a própria: “Você é uma grande poeta – e é um erro para o tempo no qual você está vivendo que não cante mais alto”. O livro Poesia completa, vol. II: Folhas soltas e perdidas fecha a edição que trouxe, pela primeira vez, a obra completa de Emily Dickinson para a língua portuguesa, ajudando o legado da autora a chegar a novos horizontes. Não é necessário a leitura do primeiro volume para apreciação do segundo. A obra é essencial para todos os amantes da poesia e profissionais de tradução.

Fui uma Phebe – nada mais –

Uma Phebe – nada menos –

A notinha que outros largavam

Eu arranjava –

Escondida, ninguém nota –

Tímida, ninguém chama –

Uma Phebe nem deixa marca

Na Calçada da Fama –

Emily Dickinson

Poesia completa, vol. II: Folhas soltas e perdidas

Autora: Emily Dickinson

Tradução: Adalberto Müller

ISBN: 978-65-86253-97-9

Edição: 1a

Ano: 2021

Páginas: 768

Formato: 23 x 16 x 4 cm

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