Por Sophie Galeotti
Quando pensamos em literatura, é comum tomarmos como referência apenas as produções ocidentais. Todavia, a literatura oriental tem uma amplitude temática imensa a nos oferecer, mesmo que sua leitura não seja hábito de nossa cultura. Entre os proeminentes autores orientais, está Lu Xun, ícone do modernismo na China, promotor e pioneiro do uso do chinês vernacular (forma de chinês escrito que incorpora as variedades da língua usadas em todo o país).
Não foi apenas em sua linguagem que Lu Xun foi revolucionário: persistente crítico da sociedade chinesa, sempre foi ativo politicamente, algo evidente em suas narrativas. A Editora da Unicamp, em parceria com o Instituto Confúcio, agora disponibiliza ao leitor a coletânea de memórias do autor, Flores matinais colhidas ao entardecer, 朝花夕拾, traduzida pela primeira vez para o português e em edição bilíngue chinês-português.
A tradução da obra foi feita por Peggy Yu, falante nativa de mandarim, graduada em pedagogia e mestre em linguística aplicada pela Unicamp. A Apresentação é de Gao Qinxiang, um dos diretores do Instituto Confúcio.
A autora da Introdução, Fan Xing, usa a figura do Barão de Macaúbas, visto pelo menino Graciliano Ramos em Infância, para ilustrar o quanto Lu Xun, escritor imposto pelo currículo escolar, pode, inicialmente, parecer intimidador aos jovens leitores chineses. A escrita de Lu Xun, que mistura coloquialidades com marcas literárias tradicionais, além das alusões históricas e “insinuações obscuras”, pode distanciar esses leitores ao primeiro contato. Porém, mais tarde, o autor tem o potencial de tornar-se “um escritor que consegue exprimir a nossa aflição comum e persistente”. Esta edição de Flores matinais colhidas ao entardecer ainda conta com centenas de notas de rodapé que explicam as referências históricas, culturais e filosóficas feitas pelo autor.
A carreira de Lu Xun é ampla: trabalhou como editor de diversas revistas literárias, foi um dos fundadores da Liga dos Escritores de Esquerda da China, atuou como professor universitário na Universidade de Xiamen – e honorário em outras universidades – e como diretor da primeira seção da Secretaria de Educação Social no Ministério da Educação. Fan Xing destaca o apoio público do autor ao movimento das alunas da Universidade Normal Feminina de Pequim e suas desavenças com intelectuais conservadores e reacionários, como Chen Xiying e Xu Zhimo. Estes dois lançaram agudas críticas ao apoio de Lu Xun ao movimento estudantil.
Em 1925, sua participação no movimento organizado pelas alunas da Universidade Normal Feminina de Pequim, que se manifestavam contra a proibição de participar de atos políticos e contra a expulsão das estudantes revolucionárias – ambas as medidas tomadas pela reitora Yang Yinyu –, fez com que Lu Xun perdesse seu cargo na Secretaria de Educação Social; apesar de ter recorrido à Justiça e ganhado o apelo, ele teve de deixar Pequim. No primeiro semestre de 1926, alunas e alunos reuniram-se em protesto ao imperialismo à porta do Conselho do Estado e dezenas de pessoas foram alvejadas no conflito – entre elas, duas de suas alunas. Então, chegou a ele a notícia de que o governo iria prendê-lo por ser considerado “um dos agitadores a favor do comunismo”. Em sua fuga, passou meses refugiado e escreveu três de suas memórias. As duas primeiras foram escritas em Pequim, antes de sua perambulação de fuga, e as cinco finais, no andar superior da biblioteca da Universidade de Xiamen, depois de os intelectuais reacionários já terem excluído Lu Xun de seu círculo. As memórias e a literatura do autor externam o seu âmago revolucionário; Lu Xun era contrário à “literatura pela literatura”: “na sua opinião, as palavras não são ornamentos deleitosos, mas instrumentos cirúrgicos”, como nota Fan Xing.
Como persistente crítico da sociedade chinesa, em sua obra, Lu Xun constrói um estilo de escrita irônico. Um capítulo que bem ilustra isso é “A doença de meu pai”. Rememorando a perda de seu genitor, inicia o capítulo com um relato sobre um renomado médico chinês, que utilizava raras ervas e compostos medicinais para curar os pacientes. Em seu ofício, tornou-se riquíssimo e pôde se dar ao luxo de “não realizar consultas por menos de cem yuan”. Uma abastada família solicitou os seus serviços para tratar da filha que adoecera. Em uma primeira consulta, diagnosticando não haver nada de grave com a menina, o médico prescreveu uma receita, pegou seus cem yuan e partiu. As ervas medicinais fizeram com que ela melhorasse muito, e seu pai solicitou o retorno do médico para um novo exame. Ao examinar a paciente, o médico percebeu seu pulso estático e gelado. Afirmou compreender a doença que a acometia e prescreveu mais uma receita de cem yuan, em moeda estrangeira. O patriarca da família temeu que a doença fosse mais complicada do que aparentava, e, então, solicitou que ervas mais poderosas fossem prescritas. A receita que o médico deixou antes de ser gentilmente conduzido à saída foi a seguinte: “Pague duzentos yuan em moeda estrangeira conforme este comprovante”. Lu Xun emenda esse texto com o relato do padecimento de seu pai, ocorrido quando o autor ainda era criança. Foi com médicos como esse que sua família teve de lidar durante o doloroso processo. Por mais que a memória em si seja sobre uma tragédia familiar – o adoecimento e a perda do pai –, o autor a introduz com um irônico episódio, que já dá o tom de como será o desenrolar da narrativa sobre seu genitor e abre espaço para a crítica à prática de medicina chinesa que visa ao enriquecimento pessoal.
Em seu livro, o autor também apresenta claramente o que pensa ser admirável. Durante a juventude, chegou a estudar medicina moderna no Japão e lá conheceu um dos seus grandes mestres, professor Fujino, que nutria uma esperança afetuosa por seu aluno e, incansavelmente, transmitia-lhe seus conhecimentos. Lu Xun interpretou essa esperança e esses ensinamentos como direcionadas não apenas a ele, mas à China: “o professor gostaria de presenciar o dia em que essa nação também pudesse contar com os estudos médicos modernos; em um sentido mais amplo, porém, eram em prol da ciência, pois esperava que a medicina moderna fosse transmitida à China”. O escritor conclui seu pensamento situando sua admiração pelo mestre não em seu prestígio externo – acadêmico e social –, mas em seu próprio brio e em sua postura dedicada: “Aos meus olhos, ele é um homem grandioso, embora seu nome não seja conhecido por muitas pessoas”. Ao abandonar os estudos da medicina, Lu Xun ganhou, como lembrança, uma fotografia do professor. O escritor relata que olhar para ela era “o suficiente para que a consciência desperte e eu me sinta encorajado. Então, acendo um cigarro e continuo a escrever os artigos odiados pelos ‘intelectuais e cavalheiros’”. Estes últimos são aqueles intelectuais reacionários, de renome e prestígio acadêmicos.
A trajetória de vida de Lu Xun coincidiu com momentos conturbados pelos quais seu país passou; afinal, durante a sua vida presenciou o fim das dinastias, a divisão da China durante a Era dos Senhores da Guerra – período no qual foi perseguido pelo governo – e a unificação da República da China, além dos conflitos violentos entre a China e o Japão – que o afetaram como cidadão chinês. Ademais, as experiências pessoais de Lu Xun foram difíceis; Fan Xing nota marcas em sua trajetória que influenciaram seu pessimismo, como “aguentar a tristeza e a pobreza causadas pela morte e pela doença e enfrentar o engano e a desconfiança dos outros”. Ele não deixou de reconhecer a dificuldade – e também a tristeza – das circunstâncias que lhe dificultaram o caminho, mas não se resignou diante disso. Pelo contrário, usou os percalços como combustível para a crítica. Como “um grande escritor, revolucionário e pessimista”, o autor consegue, entre a tênue fronteira que separa o pessimismo e a resignação, usar da sua ironia para enfrentar o presente, ainda que sua visão de mundo seja negativa. Também nas palavras de Fan Xing, “o pessimismo de Lu Xun não o levou ao afastamento e à desistência, mas à luta heroica e desesperada”.
A riqueza da escrita de Lu Xun oferece-nos várias reflexões. Como sua postura, apesar de pessimista, nunca apagou seu fogo revolucionário? Como podemos, especialmente passando por momentos conturbados e incertos, apreender sua postura como um ensinamento sobre a forma de encarar tempos sombrios sem sucumbir nem se curvar diante deles? Como os clássicos, a obra de Lu Xun incita o leitor a fazer perguntas e a procurar novos caminhos diante das complicadas questões. Cabe a nós fazer o exercício de perguntar e de tentar encontrar as respostas, e o livro Flores matinais colhidas ao entardecer oferece uma rica fonte de inspiração à nossa imaginação.
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Flores matinais colhidas ao entardecer
Autor: Lu Xun
ISBN: 9786586253818
Edição: 1
Ano: 2021
Páginas: 240
Formato: 23 x 16 x 1,5 cm