
Por Everaldo Rodrigues
A expressão a cappella vem do italiano e caracteriza a música vocalizada sem o acompanhamento de instrumentos. Tem como origem o canto gregoriano, executado apenas por vozes de clérigos que não raro desciam do presbitério e cantavam em uma capela lateral da igreja, o que teria originado a denominação. Uma música executada apenas com as vozes a partir de uma composição instrumental tradicional também pode ser definida como a cappella. Muitos compositores escreveram peças dessa natureza ao longo da história, de Mozart a Heitor Villa-Lobos, e entre eles está uma compositora que já tratamos aqui no blog: Dinorá de Carvalho. O resgate de suas obras ganha mais um reforço com o lançamento de Peças corais a cappella, que se segue à publicação de Salmo XXII – O Bom Pastor. A publicação, lançada pela Editora da Unicamp, é fruto das pesquisas do Centro de Integração, Documentação e Difusão Cultural da Unicamp (Ciddic), cujo trabalho é preservar e divulgar um acervo de música contemporânea com um repertório de mais de 15 mil exemplares, produzidos principalmente por compositores brasileiros dos séculos XX e XXI.
Dinorá de Carvalho atuou de forma muito relevante no cenário da música erudita brasileira. Natural de Uberaba, Minas Gerais, a compositora iniciou sua carreira nos anos 1930, após estudar piano em São Paulo e Paris. Seu trabalho foi amplamente premiado entre os anos 1960 e 1970, e ela também foi uma das fundadoras da Orquestra Feminina de São Paulo e membro-fundador da Academia Brasileira de Música. A organização de suas peças corais a cappella ficou sob responsabilidade de Flávio Carvalho, pós-doutor em Música pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autor de outros livros sobre a compositora, como Canções de Dinorá de Carvalho: uma análise interpretativa, de 2002, e Canções de Dinorá de Carvalho para voz e piano, de 2017, além de ter organizado o citado Salmo XXII – O Bom Pastor – para barítono e conjunto de câmara para a Editora da Unicamp em 2019.
Peças corais a cappella dá continuidade a esse trabalho. A nova publicação traz outra vertente da produção de Dinorá de Carvalho: suas composições para coro. São oito peças, compostas entre os anos de 1933 e 1966, que permitem apreender a conexão da compositora com as vanguardas do século XX. Na apresentação da obra, Flávio Carvalho destaca a preocupação dela com “os efeitos vocais inusitados, o trabalho com o texto de forma lúdica e provocativa, tanto quanto com os efeitos da dinâmica em função do texto e das alturas nas vozes do coro”. As peças corais de Dinorá de Carvalho participaram de concursos e obtiveram relativo sucesso: no ano de 1937, as obras Procissão de Cinzas em Pernambuco e Caramurus da Bahia, ambas com textos do poeta barroco Gregório de Matos, ficaram em segundo lugar no Concurso de Peças Corais do Departamento de Cultura da Prefeitura do Município de São Paulo.
Outro ponto interessante a destacar são as referências presentes em algumas peças. Além da poesia de Gregório de Matos, Dinorá de Carvalho buscou reinterpretar temas típicos da música tradicional brasileira: é o caso de Ou-lê-lê-lê!, peça composta em 1936 que apresenta um texto popular de Pernambuco, recolhido por seu amigo Mário de Andrade e registrado no livro Ensaios sobre a música brasileira como exemplo do ritmo Maracatu. Outro exemplo é Boi Tungão, de 1950, cujo texto foi retirado do livro Estudos de folclore, de Luciano Gallet, e representa o gênero popular Coco de Ganzá.
Dinorá de Carvalho também recorreu a temas religiosos: Ave Maria foi escrita a partir de um tema tradicional católico, em 1938, enquanto Angorô e Olorigena (Omulu), ambas de 1966, foram compostas com base em textos de caráter religioso do Candomblé Angola e do Candomblé Jeje, respectivamente. O livro também traz a primeira peça coral de Dinorá de Carvalho, intitulada Acalanto. A peça conta com texto de Cleomenes de Campos e foi composta em 1933. Sua estreia, no entanto, só ocorreu em 1962, na Discoteca Pública Municipal da cidade de São Paulo, quando foi interpretada pelo coro da Sociedade Pró-Música Brasileira sob regência do maestro alemão Klaus Dieter Wolff.
A edição traz as transcrições fonéticas das peças corais, em acordo com as Normas de Pronúncia do Português Brasileiro Cantado estabelecido em 2005, utilizando o Alfabeto Fonético Internacional (AFI). Traz também as partituras das peças, editadas com base em critérios estabelecidos pela a Ecdótica e pela Crítica Textual, como destaca Flávio Carvalho, que partiu de documentos manuscritos autógrafos, cópias manuscritas e outras fontes. O objetivo é divulgar a obra de Dinorá de Carvalho “com uma revisão minuciosa dos documentos encontrados, observando suas características e avaliando possíveis erros, incongruências e modificações que por acaso pudessem ser identificadas”. O organizador salienta que as versões resultantes do trabalho de edição são totalmente interpretativas, uma vez que, dessa forma, o editor tem o maior grau de mediação com as metodologias editoriais. Isso permite a uniformização gráfica das peças, mas pode levar “à fixação de apenas uma das leituras possíveis do manuscrito”. No entanto, isso não significa que a execução das peças corais de Dinorá de Carvalho, a partir das transcrições e das partituras presentes na publicação, soará diferente do que foi imaginado pela compositora, mas sim que o método interpretativo foi necessário para o estabelecimento de uma versão final, visto que boa parte da obra dela ainda se encontra manuscrita e fragmentada. Para fechar, a obra traz um aparato crítico que informa quais foram as decisões editoriais tomadas ao longo do trabalho de edição, de forma que o maestro e o coral saibam em quais pontos elas foram alteradas e por quê.
Com Peças corais a cappella, mais um grande passo é dado na direção de preservar e divulgar uma obra musical há anos esquecida, valorizando o trabalho de compositores brasileiros dentro da tradição da música erudita. Também é mais um indicativo da importância de Dinorá de Carvalho na música brasileira como uma mulher que se firmou dentro de um campo amplamente dominado por homens e que trabalhou com temas tipicamente brasileiros de maneira inovadora.
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Autor: Dinorá de Carvalho
Organizador: Flávio Carvalho
ISBN: 9786586253000
Edição: 1
Ano: 2020
Páginas: 76 p.
Dimensões: 28,00 x 21,00 x 1,00 cm