
Por Everaldo Rodrigues, Gabrielle Teixeira, Luisa Ghidotti, Jennifer Araújo, Mariana Bercht, Thaís Rodrigues, Sophie Galeotti e Vinícius Russi
Até o início do século XX, espetáculos, feiras, circos e teatros contavam com a exibição pública de pessoas, explorando suas características peculiares. Nativos africanos e indígenas eram expostos em jaulas, como animais. Compunham o humilhante show homens e mulheres com doenças que afetavam seus corpos, correndo o mundo nos chamados freakshows. Essas apresentações, que hoje causam indignação, naquele tempo serviam para reforçar comportamentos e ideias do homem branco, como o racismo e a suposta missão civilizadora de nações imperialistas.
Para estudar esse pensamento, que contava com o aval de muitos cientistas, Sandra Sofia Machado Koutsoukos analisou centenas de imagens e vídeos produzidos ao longo do século XIX e no início do século XX. Esse estudo gerou Zoológicos humanos: gente em exibição na era do imperialismo. O livro faz parte da coleção Históri@ Ilustrada, uma iniciativa da Editora da Unicamp de publicar pesquisas em História Social e da Cultura no formato de e-book, permitindo que fontes não textuais, como vídeos, músicas e outros registros sejam incorporados à obra e acessados diretamente pelos leitores. Diferentemente dos outros livros da coleção, Zoológicos Humanos conta também com versão impressa, na qual o material audiovisual pode ser acessado por meio de QR Codes.
Koutsoukos possui doutorado em Multimeios pelo Instituto de Artes da Unicamp. Sua pesquisa, realizada com o apoio da Fapesp, abordou a representação dos negros em fotografias do século XIX, traçando a produção, a circuação e a significação de seus retratos. Em seu pós-doutorado, especializou-se em História da Fotografia. Fruto dessa linha de pesquisa, o presente livro é repleto de fotografias e, ao construir a narrativa de cada uma delas, a autora busca ir além do que se vê, empenhando-se em imaginar o antes, o depois e em chamar a atenção para o que está ali, mas não é percebido ao primeiro olhar.
No primeiro capítulo, “Entretenimento ou objeto de estudo?”, Koutsoukos trata do interesse econômico e científico de europeus por pessoas que tinham alguma anomalia física ou pertenciam a culturas não europeias, sendo utilizadas como atrações em parques, circos, teatros e zoológicos. A autora ilustra essa prática com diferentes exemplos, como o caso de Sarah Baartman, uma mulher que nasceu na África do Sul e teve seu corpo explorado durante sua vida e após sua morte por ter esteatopigia, hipertrofia na região das nádegas, uma característica genética das mulheres khoi-san. Por essa razão, Sarah participou de freakshows e, sem seu consentimento, teve seu corpo vendido e analisado após seu falecimento. Ainda nesse capítulo, é discutido o caso de gêmeos xifópagos, também conhecidos como siameses, utilizados como grandes atrações nos espetáculos de aberrações. Em especial, Koutsoukos apresenta Maria e Rosalina, as primeiras gêmeas siamesas submetidas a um processo cirúrgico de separação de corpos, o que despertou um grande interesse mundial pelo acontecimento, não apenas de médicos e cientistas.
O segundo capítulo aborda casos de elefantíase e comenta registros do fotógrafo Christiano Junior, em especial, fotografias que provavelmente foram utilizadas por médicos para estudo e catalogação de casos da doença na época. Além das imagens, a autora também comenta trechos de textos e discursos médicos sobre a elefantíase, da qual pouco se sabia ainda. Partindo desses arquivos, a autora faz uma incursão na história de Joseph Merrick, o inglês que ficou conhecido como o homem elefante, dedicando várias páginas à narração de acontecimentos de sua complicada vida, desde a infância, marcada pelo assédio das outras crianças, até a tranquila morte em um alojamento de hospital em Londres.
Já o capítulo três tem como assunto principal a exposição dos índios botocudos brasileiros. Primeiramente, a autora faz uma breve introdução sobre como as técnicas fotográficas foram aperfeiçoadas, produzindo imagens cada vez mais próximas da realidade, o que levou a um amplo uso da fotografia por exploradores do mundo colonial, antropólogos e cientistas, os quais recorreram a essas técnicas para registrar e catalogar indivíduos negros, mestiços e indígenas, entre eles os índios botocudos estudados no capítulo. A autora comenta várias fotos de índios dessa etnia, analisando a produção daquelas imagens: a presença ou a ausência de vestimentas, os cenários, as poses, as expressões dos modelos, a intervenção dos fotógrafos, o tipo de circulação das imagens (científica, comercial ou pessoal), entre outros fatores. A autora ainda destaca como sua produção e difusão serviram de ferramenta e suporte para o racismo científico da época. Em meados do século XIX, muitas mostras foram organizadas pelo Museu Nacional com o apoio do governo brasileiro. Nelas, não eram exibidas apenas obras de arte sobre os nativos do país, como também aquelas que eram produzidas por eles. Artefatos, esculturas, retratos, pinturas ocupavam dezenas de salas em que as populações vistas como selvagens e perigosas eram classificadas e expostas. Mais que isso, indígenas em carne e osso, principalmente botocudos, foram deslocados de suas terras, somando-se aos objetos de estudo e entretenimento.
No capítulo quatro, a autora ainda descreve as exposições universais, com origens na Europa e com grande repercussão nos EUA, que exibiam pessoas de todas as partes do mundo, seja na categoria de aberrações ou de culturas exóticas. A feira de Chicago foi um desses eventos e marcou a história. Com direito a roda-gigante e passeio de balão para uma visão panorâmica, o evento reservou grandes espaços para exposições de cada país, bem como para apresentar grupos completos de pessoas como amostras de povos distintos, exibidos trabalhando ou apenas circulando pelos espaços para serem observados. Um rentável show de gente, amparado pelo discurso científico, que dava status internacional ao país organizador. Um dos grupos expostos na feira de Chicago foram os daomeanos. Imaginava-se que não despertariam grande interesse do público, já acostumado a ver negros africanos. No entanto, o grupo acabou fazendo bastante sucesso devido a uma narrativa criada a respeito de sua selvageria e de seus hábitos canibais. A autora usa fotos e relatos sobre a feira para ilustrar a exploração do racismo como estímulo à curiosidade e explicita o ódio dos espectadores às pessoas expostas.
O quinto capítulo inicia-se desenhando um panorama da colonização Belga do Congo, violentíssima e bastante discutida por outras nações imperialistas europeias. Uma das principais potências opositoras a essa forma de exploração, em que se mantinha um regime de escravidão com punições mutilatórias e assassinatos, foi a Inglaterra, cujo posicionamento era de que a colonização deveria ser “proveitosa” para ambos os lados – lucrativa para a metrópole e “civilizatória” para a colônia. Mas, por meio de um detalhado estudo historiográfico, o que se vê são as práticas brutais de exploração neocolonial e a destruição que ela causou em tantas vidas. Um bom exemplo é Ota Benga, rapaz congolês da tribo Mbuti, arrancado de sua terra natal pelo missionário belga Phillip Verner. Ota foi exibido em feiras étnicas em St. Louis, junto a outros rapazes congoleses e também junto a várias pessoas de etnias não caucasianas, cuja exposição era justificada por seus fins antropológicos e de entretenimento para a população local. Mais tarde, ele chegou a ser exibido no zoológico de Bronx, Nova Iorque, como “o elo perdido” entre os primatas e seres humanos, dividindo a cela com macacos. O jovem foi completamente alienado de sua individualidade e de sua humanidade em nome de espetáculos e teses pseudocientíficas. Apesar de atrair um grande público, a apresentação de Ota Benga no zoológico do Bronx gerou protestos por parte de líderes religiosos afro-americanos, que a consideraram um insulto à sua comunidade. O rapaz, cuja exibição escancarava a desumanidade do imperialismo e o racismo presente em uma sociedade que se considerava civilizada, passou a oferecer resistência e a mostrar descontentamento com o que acontecia à sua volta. Sua reação trouxe resultados, fazendo com que o diretor do zoológico, William Temple Hornaday, quisesse se desvencilhar dele. Ota Benga foi entregue aos membros da comunidade negra, que tinham planos de “civilizá-lo”, mas, apesar das tentativas de se adequar à sociedade americana, o congolês não parecia se encaixar e acabou por se suicidar em uma noite de 1916, em Lynchburg, na Virgínia.
As práticas e situações apresentadas em Zoológicos Humanos parecem inconcebíveis nos dias atuais. Porém, não desapareceram de nossa sociedade. Elas ainda acontecem, mas de maneiras tão sutis e mundanas que chegam até a ser curtidas, comentadas e compartilhadas nas tão presentes mídias sociais.
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Zoológicos humanos: gente em exibição na era do imperialismo
Autora: Sandra Sofia Machado Koutsoukos
ISBN: 978-65-86253-32-0
Edição: 1a
Ano: 2020
Páginas: 416
Dimensões: 16 x 23 cm