Conhecimentos subjugados: a participação feminina na ciência e na política brasileiras

Por Luisa Ghidotti Souza

“Historicamente, a política foi considerada como “coisa de homens”, o que reforçou a ideia de que essa era a maneira normal de se fazer política; e os trabalhos de pesquisa politológica são influenciados por essa visão androcêntrica. Nem a “ciência” nem a “política” têm conseguido fugir da articulação da ordem social construída assimetricamente entre homens e mulheres.” Flavia Freidenberg. 

Quantos são os projetos acadêmicos desenvolvidos majoritariamente por mulheres? Talvez uns tantos na área de educação e uns outros concentrados nos institutos de artes. Calma, melhor não generalizar. Afinal, nós mulheres estamos em todos os lugares. Mesmo  assim, o corretor automático aponta erro de sintaxe quando escrevemos as cientistas e sugere como forma correta o artigo no masculino. É como se um grupo de cientistas só fosse possível com a inclusão de um homem. Quando nos aproximamos de espaços tradicionalmente masculinos, como a política e sua teorização, a marginalização das mulheres parece ainda maior. Ao menos no Brasil, política parece ser lugar de homem. Mas será mesmo que podemos afirmar isso?

No livro Mulheres, poder e ciência política, vemos cabeças femininas produzindo conhecimento em diversos momentos históricos do país. A obra, organizada por cinco pesquisadoras, foi construída com o engajamento de dezenas de mulheres que fazem ciência política no Brasil. Algumas, intelectuais entrevistadas que se dispuseram a compartilhar e registrar suas trajetórias acadêmicas, outras, entrevistadoras que, no papel de pesquisadoras, anseiam por explorar o lugar que as mulheres ocupam nessa área de atuação. Sem contar as autoras dos capítulos, que mergulharam no oceano da disciplina para explorar seus cantos mais profundos e encontrar uma ciência política impulsionada também pelo gênero feminino.

A elaboração do projeto Mulheres na Ciência Política, da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP), durante a gestão da presidenta feminista Flávia Biroli, deu-se, predominantemente, pela participação de pesquisadoras. O resultado é apresentado nessa obra e em um repositório de entrevistas que registra a história das cientistas políticas no território nacional. Um trabalho colaborativo que leva a sério o significado de colaboração: todas que passaram pelo projeto são intelectuais ativas na área e puderam tanto relatar quanto registrar os depoimentos, além de escrever a respeito deles (entre outros assuntos).

O tema da obra é desigualdade de gênero dentro da ciência política, que, segundo Biroli, é um campo de estudo marcado pela inclusão desigual das mulheres. O interesse surgiu pela percepção de que 55% dos associados da ABCP são homens, número que coincide com a filiação nos partidos. Mas a estatística muda quando se trata de espaços acadêmicos, em que as mulheres vão perdendo essa paridade. O problema não está, então, no desinteresse delas pela área, mas nas relações de poder institucionais. Assim, a primeira parte do livro (que conta com seis capítulos, além da introdução) preocupa-se em entender por que isso ocorre. Que motivo leva as mulheres a não ocuparem espaços institucionais da ciência política, como a docência e a representação, de maneira paritária?

A questão do acesso dessas pesquisadoras aos espaços de prestígio é amplamente discutida. Os ensaios desenvolvidos demonstram como a presença desigual expõe hierarquias, analisando as convenções sociais e institucionais, bem como o privilégio masculino. Indo um pouco mais além, trata de questões raciais e de classe, do acesso a espaços oficiais, abordando também as trajetórias de atuação de mulheres formadas na área e sua relação com a produção de conhecimento.

No primeiro capítulo, Flávia Biroli apresenta uma contextualização da questão de gênero na ciência brasileira, mostrando como e por que a intelectualidade historicamente valorizada se concentra em trabalhos feitos por homens. Uma vez que a produção de conhecimento acadêmico por mulheres só foi reconhecida e discutida com a ascensão do feminismo. No capítulo seguinte, Clara Araújo investiga a divisão sexual do trabalho doméstico, enquadrando-a como um problema político. No terceiro capítulo, Teresa Sacchet discute a desigualdade de gênero nas disputas eleitorais, um assunto emergente desde agosto de 2016.

Marlise Matos dá continuidade à discussão, pensando o sexismo na maneira como se conta a história. Trazendo informações sobre a participação feminina no processo de redemocratização no Brasil, destaca a importância do feminismo nas teorizações sobre a democracia. No quinto capítulo, intitulado “#Eles não! O confronto eleitoral feminino contra Trump e Bolsonaro”, Daniela Mussi e Débora Zanini discutem a participação política feminina nos desafios contemporâneos. A primeira parte do livro é encerrada com o texto de João Feres Júnior, que amplia o campo de visão das análises ao tratar da desigualdade de gênero somada à desigualdade racial nas ciências sociais.

A segunda parte do livro é um pouco mais extensa porque discorre sobre alguns dos desdobramentos de pesquisas a partir das entrevistas realizadas com cientistas políticas de várias gerações. A “Introdução – Desafios e trajetórias na ciência política”, de Carla Almeida e Cristina Buarque de Hollanda, apresenta os recortes metodológicos e temáticos utilizados para uma abordagem feminista da ciência política:

“Orientados por diversas fontes e perspectivas analíticas, os capítulos da segunda parte desta coletânea abordam o papel e a presença das mulheres na construção, na autonomização e na expansão do campo disciplinar da ciência política no Brasil e na América Latina. No conjunto, eles oferecem uma contribuição preciosa para o conhecimento da história da disciplina, raramente olhada e contada a partir da experiência das mulheres e da estrutura de poder que hierarquiza os gêneros e condiciona a produção e a divulgação do conhecimento, bem como a organização dos ambientes e das carreiras profissionais.”

A partir das entrevistas, Almeida e Hollanda reconhecem um avanço na área. Nos relatos, as autoras identificam marcadores importantes de desigualdade de gênero, com destaque para as diferenças geracionais, regionais e institucionais, que são entendidas como questões de pertencimento que captam a diversidade identitária daquelas que produzem conhecimento. As análises abrangem mulheres que lutaram, a partir da década de 1960, pela institucionalização da disciplina no país, pela consolidação dessa institucionalização e pela expansão da área de estudo a partir dos anos 2000, com a criação de novos programas de graduação e pós-graduação.

Três desses seis capítulos analisam dados das entrevistas em si e os outros três investigam algum dos marcadores sociais destacados. As entrevistas trazem um ponto de vista feminino sobre o processo de redemocratização e apresentam diferentes visões de como fazer ciência política. Mostram como o machismo é extremamente relevante na composição das relações de poder na academia e como as pesquisadoras têm um senso de responsabilidade pública forte em relação à sua área de atuação e às produções de conhecimento em que estão engajadas.

Para dar um exemplo, podemos destacar o capítulo nove, “Caminhos e descaminhos das cientistas políticas brasileiras”, de Céli Regina Jardim Pinto e Augusta da Silveira de Oliveira. Elas fazem uma análise comparada de diferentes períodos da produção feminina em ciência política no Brasil, buscando entender, por meio das entrevistas, quem eram as mulheres que atuaram na área durante o processo de redemocratização e o que as motivou a escolher esse campo de estudo. A pergunta principal a que o capítulo tenta responder é: o fato de ser mulher influenciou a vida acadêmica dessas intelectuais?

Sobre isso a maternidade aparece como questão central; cerca de metade das entrevistadas não teve filhos, apontando a maternidade como um empecilho para a trajetória acadêmica. Em comparação com as mulheres mães no Brasil como um todo, esse dado mostra-se expressivo, pois o índice de mulheres da mesma faixa etária sem filhos não ultrapassa os 13%, o que mostra como a carreira acadêmica teve forte influência na vida familiar das cientistas. Em contrapartida, a maioria das que são mães afirma, em seus relatos, que a maternidade não as atrapalhou em suas carreiras acadêmicas, o que, segundo as autoras, indica como o sentimento de culpa, resultante da misoginia estrutural, pode fazer com que as mães não consigam assumir as dificuldades que enfrentaram para escrever suas teses e promover avanços conceituais, ao mesmo tempo que cuidavam de seus filhos, muitas vezes sozinhas ou com a ajuda de outras mulheres (e aqui as autoras destacam a questão da sororidade feminina). De uma forma ou de outra, a questão da maternidade é assunto em todos os relatos, sem exceção.

Outro fator de destaque é que todas as mulheres entrevistadas afirmaram que nunca tiveram problemas na carreira profissional por serem mulheres. Para Céli Pinto e Augusta de Oliveira, isso não indica a inexistência do machismo acadêmico, mas expõe a dificuldade, principalmente entre as mais velhas, de reconhecê-lo, além de mostrar como as mulheres que ocupam os lugares de prestígio acabam por abdicar do feminismo, assim como por negar a presença da hierarquia de gênero e as situações de violência no ambiente acadêmico. Uma visão que sofre uma mudança geracional, a partir do momento em que as mulheres estão assumindo sua posição como feministas também na ciência política. 

Outro exemplo de como esses marcadores funcionam nas investigações é apresentado no capítulo dez. Escrito a oito mãos (Monique Menezes, Olívia Cristina Perez, Lizandra Serafim, e Dolores Silva), trata das relações de gênero na ciência política nas regiões Norte e Nordeste. A partir de um levantamento dos dados da atuação acadêmica de 72 mulheres em universidades dessas regiões, as autoras mostram a diferença geracional para enfrentar a carreira acadêmica e para assumir seus papéis como intelectuais. Identificam problemas comuns relacionados ao feminino, como a proporção de cargos institucionais de destaque ocupados por homens e por mulheres, ficando a cargo das mulheres a produção acadêmica e para os homens os espaços administrativos e deliberativos, o que aponta a presença do machismo e da misoginia nestes espaços.

O décimo primeiro capítulo, de Danusa Marques e Layla Carvalho, traz a diferença entre mulheres e homens na produção e veiculação de artigos na área a partir de 2000 (tratando de um período posterior ao relatado nas entrevistas) e as proporções de gênero na participação em mesas redondas e sessões oficiais da ABCP. Essas comparações expressam relações desiguais nas produções autorais e nos espaços oficiais de decisão. O último capítulo, escrito por Marcia Rangel Candido, trata do período entre 1950 e 1970, que antecede aquele registrado no repositório de entrevistas. As autoras analisam a produção bibliográfica de mulheres que escreveram sobre ciência e fenômenos políticos e atuaram antes mesmo da institucionalização da disciplina, criando a base para as discussões que viriam em seguida.

A obra oferece uma releitura dos lugares de poder e da política na academia a partir do olhar das mulheres que fazem ciência. As investigações convidam outras cientistas políticas a ampliar a exploração das entrevistas, que inauguram um banco de dados importante para futuras pesquisas. A produção do livro pretende desnaturalizar as hierarquias de gênero, seguindo o que vem ocorrendo nos últimos anos. Os avanços conquistados pelas mulheres nas últimas décadas, seja na ciência política, seja em outros campos de conhecimento, ou na vida doméstica, no empreendedorismo, etc., fizeram com que os lugares de prestígio social fossem ocupados também por elas. Isso é, o livro mostra, com propriedade, algo que não admite retrocesso. Uma leitura para mulheres e homens intelectuais das mais diversas áreas de estudo que se interessam por avaliar, crítica e historicamente, a paridade de gênero no Brasil e os problemas que ainda persistem. 

Para saber mais sobre o livro e adquirir o seu exemplar, acesse o nosso site!

Mulheres, poder e ciência política: Debates e trajetórias

Organizadoras: Flávia Biroli, Luciana Tatagiba, Carla Almeida, Cristina Buarque de Hollanda e Vanessa Elias de Oliveira.

ISBN: 9786586253344

Ano de publicação: 2020

Edição: 1

Formato: 26,00 x 23,00 x 2,00 cm.

Nº de páginas: 376 pp.

Peso: 560 g.

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