Por Luís Fernando M. Costa
Até o século XVIII, a produção literária era composta por gêneros textuais com matrizes antigas bem definidas. O Romantismo rompeu com essa divisão de gêneros e trouxe novas perspectivas para a concepção artística. Na tentativa de aproximar o leitor atual dos textos antigos e de seus procedimentos de análise, o crítico literário e professor do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, Alcir Pécora, contou para o Blog da Editora da Unicamp as ideias centrais de seu livro Máquina de gêneros, que acaba de ser reimpresso.
Blog da Editora da Unicamp – Professor Alcir Pécora, o senhor poderia começar explicando o título do seu livro: Máquina de gêneros?
Alcir Pécora – Basicamente, a ideia é a de que os gêneros literários, pelo menos até o século XVIII, têm uma determinação fundamental na construção do sentido do texto. Hoje, se fala no sentido de um poema como se fosse independente da forma em que foi escrito. No entanto, até o século XVIII, cada gênero se associava a tópicas, argumentos e registros linguísticos específicos, isto é, a seleção da matriz textual já definia um tipo de tema ou de discussão. O peso da determinação de cada gênero no resultado da obra é muito nítida. Por exemplo, não se pensava num termo abrangente como “poema”, que, para nós, tanto pode ser uma canção, uma elegia ou um soneto. O que eu chamei de “máquina” é uma construção organizada retoricamente de modo que a escolha de cada forma já implica o tipo de assunto e de interesse de cada texto.
Blog da Editora da Unicamp – O livro propõe uma metodologia segundo a qual cada texto é analisado com atenção às prescrições retóricas de seu gênero específico. De que modo esse método contrapõe os procedimentos românticos de análise?
Alcir Pécora – A grande mudança ocorrida na passagem do antigo regime literário para o regime contemporâneo se deu justamente no Romantismo, quando a literatura passa a ser a expressão do sujeito. Como se houvesse uma unidade psicológica já configurada que apenas se manifestasse através da literatura. No entanto, até o século XVIII, a produção literária tinha a ver com a emulação, ou seja, com a imitação de determinadas matrizes poéticas de prestígio no mundo antigo; e o grande autor era aquele que conseguia rivalizar com a matriz de cada um desses gêneros. Isso é exposto no livro: eu acompanho dez gêneros literários distintos, estudo as características de cada um deles e mostro de que modo tais características balizam o universo semântico gerado.
Blog da Editora da Unicamp – Qual é o objetivo de utilizar esse método?
Alcir Pécora – Basicamente, trata-se de retomar os procedimentos de análise dos artefatos retórico-poéticos adequados à época de sua produção. Assim, segundo a determinação material de cada gênero, há um tipo de efeito persuasivo, de caráter moral, lógico ou afetivo, a ser produzido. Não é novidade: trata-se de é um método conhecido desde a Grécia Antiga, mas que se perdeu um pouco com a predominância das perspectivas românticas. Meu livro é uma tentativa de esclarecer esses procedimentos de época para que os textos abordados sejam melhor compreendidos hoje – pois, seguramente não são bem compreendidos quando lidos por meio das abordagens românticas.
Blog da Editora da Unicamp – Na introdução do seu livro há um trecho que parece importante para a compreensão de sua proposta: “O ‘ambiente não literário’, assim, não deverá ser considerado senão como peça de um outro gênero de argumentação em busca de acordos sobre o que deve ser julgado como ‘o real’”. O senhor poderia comentá-lo?
Alcir Pécora – Esse trecho faz parte de uma discussão teórica em que eu tento mostrar que, normalmente, o tipo de estudo literário que se faz no Brasil acontece numa ordem em que se estuda primeiro o contexto, o autor e depois a obra em si. A intenção desse tipo banal de estudo é ver como a obra reflete o seu autor e o seu tempo. Essa perspectiva é claramente romântica, porque a obra seria o reflexo da personalidade do autor ou da história vivida pelo autor, sem consideração pelo gênero em que a obra é efetuada. No entanto, o que eu estou dizendo é que, no modelo antigo, o que determina a significação não é a expressividade de um sujeito – na verdade, nem se postula um sujeito. O que se postula é justamente a máquina do gênero, ou seja, a forma de produção de significado inerente a cada um dos gêneros retórico-poéticos em questão. Pensar que o contexto é algo objetivo que fornece a verdade que a literatura expressa é uma ideia equivocada, porque aquilo que nós, hoje, consideramos realidade, naquele momento, não é exatamente o que era tomado como tal. Por exemplo, para um autor do século XVI, Deus é um agente necessário da produção textual, ao passo que para alguém do mundo pós-romântico, em geral, Deus não tem mais nenhuma participação na intelecção dos objetos. Os elementos teológicos e literários separam-se radicalmente, quando, anteriormente, o que era da literatura e o que era de Deus participavam do mesmo universo semântico.
Blog da Editora da Unicamp – Para o seu método, qual é o papel da história?
Alcir Pécora – Para o meu tipo de estudo, o que interessa é a forma do gênero. Eu olho primeiro a forma e o gênero, não o contexto. É a forma propriamente literária que contém os elementos históricos mais importantes. A história está nos traços literários, ali dentro, na forma de compor a obra, e não nos elementos exteriores. Ou seja, coloquei no centro do aspecto histórico a forma literária. O livro se chama Máquina de gêneros exatamente por isso.
Autor: Alcir Pécora
ISBN: 978-85-268-1463-9
Coedição: Edusp
Edição: 2ª
Ano: 2018
Páginas: 248
Dimensões: 16×23