Por Luísa Rosa
A luta dos escravos pela liberdade foi retratada por bacharéis mulatos, como Luís Gama e André Rebouças, e imortalizada por figuras como Zumbi dos Palmares, líder do quilombo mais longevo do país. Aqueles empunharam canetas, já este empunhou armas, duas ferramentas destinadas aos homens no século XIX. E as mulheres, onde se encaixam no processo de emancipação?
Em Concebendo a liberdade, Camillia Cowling apresenta a trajetória legal que várias ex-escravas percorreram, no Brasil e em Cuba, para tentar tornar realidade as leis Rio Branco e Moret, que garantiam um ventre livre. Ao longo do livro, acompanhamos mais de perto a história de duas libertas que lutaram pela guarda de seus filhos na Justiça: Josepha, no Rio de Janeiro, e Ramona, em Havana. Como muitas outras mães, elas enfrentaram as legislações escravistas para livrar suas crianças dos antigos donos.
A autora analisa o histórico de leis brasileiras e cubanas que levaram gradualmente à abolição, como as que estabeleciam o fim do tráfico de escravos. Além do contexto legislativo, há todo um enquadramento da situação socioeconômica e das conexões que ela estabeleceu com a manutenção dos escravos nas duas principais sociedades escravistas do Oitocentos. Recorrendo às sociedades abolicionistas, ao Consulado britânico, à Família Real brasileira e às autoridades espanholas, as mulheres enfrentavam inúmeros desafios nos tribunais. Dentre eles, destaca-se a condição de analfabetos de muitos escravos, que precisavam ter suas palavras “traduzidas” por – e para – canetas e mentes da elite. Ademais, os advogados que defendiam os escravos eram os mesmos que intercediam pelos senhores em outros momentos.
Assim, para que tivessem ao menos uma chance nos tribunais, Cowling mostra que foi desenvolvida uma nova linguagem baseada em emoções e na simpatia pela causa dos escravos. A retórica da equidade foi de suma importância ao reiterar que eles eram pessoas, e não coisas: explorava-se o sofrimento de uma mãe ao ter seu filho arrancado de si para atrair a noção de igualdade humana e, assim, gerar compaixão.
O livro expõe como essa abordagem colocou em questão o que era a maternidade, definida apenas biologicamente pelas leis, mas que na prática envolvia aspectos sociais, como moral e virtude. Cada vez mais, as mulheres não brancas eram excluídas da noção de maternidade e, consequentemente, de feminilidade.
A liberdade também teve suas dimensões alteradas: significava um aumento de autonomia no trabalho e na vida familiar, uma possibilidade de melhorar as condições de vida e poder acumular propriedades, sobretudo imóveis. Ressalta-se que as mulheres livres conquistaram uma propriedade ainda mais especial: a de seus próprios corpos – que não mais pertenciam a um senhor que os violava.
Assim, o livro demonstra como as mulheres, que não tiveram estátuas nem grande presença na memória pública, conceberam a liberdade nos dois sentidos: tanto compreendendo e ressignificando a ideia de ser livre quanto gerando os novos cidadãos. “O ventre das mulheres escravizadas, antes responsável por transmitir a escravidão, tornara-se um espaço onde a liberdade passou a ser, literalmente, gestada”, escreve Cowling. Esta importante produção historiográfica sobre a escravidão no Brasil e em Cuba dá a atenção devida a essas mulheres cujas trajetórias estão inseridas nas bases das nações que ajudaram a construir.
Autora: Camillia Cowling
Tradutores: Patrícia Ramos Geremias e Clemente Penna
ISBN: 978-85-268-1461-5
Edição: 1ª
Ano: 2018
Páginas: 440
Dimensões: 15,27×23