Portal de Periódicos do GEL publica resenha sobre o livro “O vírus bandido”

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O trabalho se divide em três partes, revelando gradualmente como as metáforas podem representar uma chave de leitura valiosa em contextos pandêmicos, que invariavelmente são condicionados pela política. O primeiro capítulo faz uma grande revisão da teoria da metáfora, com foco nas metáforas sobre doenças e em como certos padrões metafóricos se repetiram ao longo da história, em diferentes crises sanitárias. O segundo capítulo traz o estudo de caso principal, das metáforas na pandemia de covid-19, não sem antes mostrar como a linguagem metafórica afetou o enfrentamento da aids e do câncer, a fim de extrair insights analíticos e estabelecer padrões comparativos. Por fim, o terceiro capítulo enfoca o aspecto político do problema, mostrando como, no Brasil, a metáfora de guerra contra o coronavírus no fim das contas favoreceu seu combate, pois acabou por unir todos os brasileiros em prol de uma causa – derrotar o inimigo comum – o que favoreceu a adesão em massa à vacinação, a despeito de profundas diferenças políticas e ideológicas que ameaçavam rachar o país e comprometer as políticas sanitárias. O capítulo constrói argumentos para mostrar que a mesma ameaça acometeu os EUA, porém lá o grupo identitário conservador se fechou dentro de si, rechaçando a vacinação, acreditando que o inimigo não era comum a todos, mas apenas aos impuros (democratas, progressistas e imigrantes).

Alguns méritos da obra merecem ser destacados, a começar pela perspicácia de escolher a pandemia no Brasil – um caos à parte – para debater o poder das metáforas e seu caráter ambivalente. Ao apresentar sua base conceitual e revisitar a história das metáforas em contextos pandêmicos, o linguista demonstra reiteradamente que elas podem, ao mesmo tempo, favorecer a compreensão de fenômenos complexos, mas também enviesá-la, com potenciais consequências danosas, e isso é especialmente válido no enfrentamento de doenças.

Além disso, é digno de nota o estilo adotado pelo autor. Moura, embora tenha levado o estudo a cabo com rigor acadêmico, adota uma linguagem leve e transparente, capaz de cativar leitores não tolerantes a academicismos enfadonhos. Passagens como a seguinte, que conferem uma nuance literária ao texto sem lhe tirar objetividade, aliviam a leitura: “O vírus era um bandido que estava em guerra contra a nossa sociedade, sempre à espreita de uma oportunidade para atacar. Ele vinha em ondas e nos atingia em cheio, deixando-nos soterrados, chegando em nossas cidades como um visitante indesejado.” (p. 103). A preferência por palavras com frescor e imagens concretas a palavreados banais e o esforço de orientar o olhar do leitor para que ele possa enxergar o problema em questão nos fazem crer que Moura esteve guiado pelo que Pinkster (2016, p. 43) chama de “estilo clássico”: “um antídoto para o academiquês […] e outros tipos de prosa mal ventilada” (ibid., p. 41).

Também é salutar a abundância de exemplos, em sua maioria extraídos do corpusMCM (Metáforas sobre o Coronavírus na Mídia) – elaborado por Alice Ribeiro Dionízio sob a supervisão de Moura –, mas também extraídos de outros estudos, cujos dados são reexaminados. Essa carga empírica dá ao autor muita tranquilidade para conduzir seus argumentos e o resguarda de potenciais críticas que o acusem de enviesamento ideológico, algo esperado, considerando os elementos explosivos com que lida.

A propósito, é perceptível seu cuidado constante para não cair num discurso maniqueísta, dicotômico e moralista sobre a política brasileira. Em especial no terceiro capítulo, em que trata diretamente da política brasileira na pandemia e inevitavelmente faz referência ao governo de então, Moura sinaliza ao leitor que busca tratar seu objeto com distanciamento, frequentemente dirigindo, de modo equânime, críticas a ambos os polos do espectro ideológico, como na seguinte passagem:

O pensamento motivado existe em todos os grupos sociais, sendo importante para manter a coesão entre seus membros e fortalecer a adesão a seus princípios. Tudo isso explica por que o eleitorado fiel de Bolsonaro (cerca de um terço da população brasileira!) aprova a gestão da pandemia: sustentar uma opinião diferente significaria romper com a ideologia do grupo e deixar trincar a identidade social conservadora, tão almejada e valorizada por essas pessoas. […] Para ser justo, erros de avaliação ocorrem também na esquerda. Até hoje, a opinião majoritária em grupos petistas é a de que Cuba não é uma ditadura. No máximo, segundo esses grupos, trata-se de um regime autoritário, mas que no fundo é voltado aos interesses do povo cubano, o que justificaria, segundo eles, esse autoritarismo (p. 157-159).

Acima de tudo, o livro surge como um olhar inesperado sobre a atual crise política pela qual passa o Brasil. Ele não pretende oferecer uma explicação para o que está acontecendo, não encaminha nenhuma solução, nem aventa desdobramentos sombrios e distópicos. No entanto, tem o mérito de deslocar nosso olhar para um ângulo inesperado que quase ninguém explorou, e isso por si já constitui seu valor.

O trabalho, justamente por não ser pretencioso e cumprir o que se propõe a fazer, apresenta poucas lacunas. Porém, em relação a algumas posições tomadas pelo autor, seria desejável, pelo menos, um aprofundamento. A principal delas é a resposta de Moura ao potencial destrutivo das metáforas. Como já sugerimos, o livro é um grande ensaio sobre o poder da metáfora, e o autor deixa muito claro que ela tem um lado positivo e um negativo. O primeiro é o fato de as metáforas nos ajudarem a nos expressarmos com mais efeito, simplificando algo difícil de entender, e isso emergiu em diferentes momentos da história, inclusive durante a pandemia de covid-19, isto é, diante de uma situação crítica, diante de algo que ninguém entendia, as metáforas ajudaram as pessoas a racionalizar o que elas estavam começando a entender. O lado negativo diz respeito a sua capacidade de enviesar a abordagem de um problema para um caminho prejudicial, como no caso dos estupros na cidade de Buffalo no início dos anos 90, que, na avaliação de Kelling (1991), foram agravados e multiplicados pela metáfora de guerra; no caso dos tratamentos do câncer e da aids, que, segundo Hendricks et al. (2018), não foram prejudicados pela metáfora do combate (na qual o paciente se via como campo de guerra), mas favorecidos pela metáfora da jornada (que conferia esperança e perspectiva ao paciente); e o caso da vacinação contra o coronavírus nos EUA, parcialmente fracassada por uma combinação de metáforas (o muro que separa os puros dos impuros e a crença de que, na guerra, o inimigo só ameaçava os impuros).

Diante desse potencial negativo, Susan Sontag, uma das maiores expoentes no tema em questão, em seu clássico Doença como metáfora (1989), propõe o abandono das metáforas na referência às doenças, pois elas sobrecarregam de significado uma realidade biológica que deve ser tratada da forma mais objetiva possível. Moura, por sua vez, descarta a proposta de Sontag, afirmando que ela

[…] não parece factível, pois, como a covid-19 mostrou, uma pandemia viral é ocasião também para uma pandemia de metáforas. Controlar as metáforas parece ser um empreendimento mais difícil e mais inócuo do que tentar controlar a própria doença. Como diz Brandt, “doenças continuam a atrair sentidos políticos e sociais muito poderosos. […] A doença está repleta de sentido” (p. 80).

Uma alternativa, conforme a sugestão do autor, seria tentar entender os diferentes contextos em que uma metáfora pode emergir no discurso sobre uma doença – justamente o que ele faz nos capítulos um e dois. No entanto, Moura não indica nem discute o que poderia ser feito para evitar ou minimizar os efeitos nocivos das metáforas nesses contextos, uma vez que sua potencial emersão tenha sido identificada. Uma resposta a isso, mais do que simplesmente descartar a proposta de Sontag, comporia uma réplica mais completa a ela. Felizmente – e a própria conclusão de Moura no livro mostra isso – as metáforas sobre a pandemia no Brasil acabaram tendo um efeito benéfico; mas, e se tivessem tido um efeito nocivo como nos EUA? O autor apenas constataria o fato e concluiria a obra em tom fúnebre ou lamentoso, sem aventar alternativas para situações semelhantes no futuro?

Apesar de não oferecer respostas para esse tipo de questão, a comparação entre o desenrolar da intersecção entre metáforas e política identitária no Brasil e nos EUA torna o livro altamente recomendável. Como já indicamos, o autor conclui que, nos EUA, o vírus e a vacina com o princípio ativo do vírus eram vistos como um inimigo que tiraria a pureza do grupo identitário conservador (aqueles que se sentiam parte desse grupo se viam como puros e acreditavam que apenas os impuros, imigrantes e democratas, estavam expostos ao inimigo, ao passo que eles estariam protegidos) e, nesse sentido, tal grupo promoveu de fato um grande boicote à vacinação nos EUA. No Brasil, por outro lado, esse discurso não funcionou: apesar de haver aqui grupos conservadores separatistas, a identidade universalista, isto é, aquela que nos inclui a todos como pertencentes a um todo nacional ou humanitário, prevaleceu, e todos se uniram contra um inimigo comum, a doença; isso resultou no sucesso da vacinação aqui a despeito de quaisquer divisões identitárias.

O vírus bandido ainda surte benefícios colaterais: ele nos provoca insights que vêm em boa hora para entender as limitações ideológicas tanto dos conservadores quanto dos progressistas, que nos ajudam a desfazer mitos moralizantes e lidar melhor com as diferenças no debate público brasileiro. Se o autor quisesse se aventurar nas prateleiras dos best-sellers, poderia experimentar um título mais apelativo do tipo “Convivendo com radicais: como entender seu vizinho bolsonarista e também seu vizinho esquerdista”. Se assim o fizesse, porém, arriscaria perder algumas de suas principais virtudes, a saber, a elegância e seriedade com que analisa seu problema e com que toca nas controvérsias políticas envolvidas.

Referências

HENDRICKS, R. et al. Emotional implications of metaphor: Consequences of metaphor framing for mindset about cancer. Metaphor and Symbol, Abingdon-on-Thames, v. 33, n. 4, p. 267-279, 2018.

KELLING, G. Crime and metaphor: Toward a new concept of policing. City Journal, out. 1991. Disponível em: https://www.city-journal.org/html/crime-and-metaphor-toward-new-concept-policing-12733.html. Acesso em: 26 set. 2022.

PINKSTER, S. Guia de escrita. Tradução Rodolfo Ilari. Campinas: Contexto, 2016.

SONTAG, S. Doença como metáfora. Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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