Entre o puro silêncio e os sons significantes, escuta-se a verdadeira palavra

Por Gabriel de Lima

Os linguistas sabem, desde os estudos inovadores de Ferdinand de Saussure, que os signos só são palavras por meio da produção de seus sentidos. Nesse processo de significação, os fatores históricos, sociais e econômicos – e, em alguns casos, individuais – estabelecem-se como mecanismos preponderantes de sentido. Entre o emissor e o receptor que está em prontidão para escutar, a palavra sonora sempre percorreu o caminho natural que separa esses dois indivíduos. No tempo presente, com “as redes sociais, [com] o avanço tecnológico desenfreado e, principalmente, o advento da internet”, esse trânsito comunicativo é acelerado, além de ser atravessado por suportes digitais e pela criação de novos códigos de diálogo.

Isso posto, podemos falar sobre as implicações dessa transformação digital em um campo artístico que tem na palavra uma de suas principais formas de linguagem: o teatro. “A palavra vai [no seu próprio processo natural] se adensando através de inúmeras sobreposições que vão constituindo seu terreno arqueológico”, porém, com o ritmo apressado da contemporaneidade, essas camadas de significações se tornam instáveis – ou seja, passíveis de constantes mudanças –, alterando também a própria comunicação entre os sujeitos, entre o falante e o ouvinte, entre os atores e os espectadores nas dramatizações teatrais. A respeito disso, a Editora da Unicamp publica Entre o ouvido e a voz, um estudo realizado pelo professor Rodrigo Spina de Oliveira Castro que examina os aspectos sonoros, biológicos e até linguísticos envolvidos nesse processo tão importante à dramaturgia.

Assim, além dos sentidos das palavras adotadas no título do livro, o ouvido e a voz, Castro “convida-nos a adentrar poeticamente em um espaço potencial ‘entre’”, um espaço que reafirma ou questiona, de forma crítica, esses conceitos. Do mesmo modo que esse campo abre caminhos à experimentação, ao desconhecido, o estudioso brasileiro evidencia como o caráter empírico do teatro permitiu que o presente trabalho fosse realizado, pois “a pesquisa em Artes Cênicas estimula os pesquisadores a buscar, inventar, criar procedimentos variados para que as belas ideias se tornem fato no corpo dos atores”. Entretanto, o livro não se restringe aos palcos teatrais, resvalando em outras áreas do conhecimento humano – já citadas anteriormente.

Outro tópico analisado no decorrer do livro e que pode ser considerado como imprescindível no ato da fala e da escuta é o silêncio, é a ausência de qualquer som, é o querer se privar da urgência pelo dizer. “Antes de falar, deixe a palavra silenciar. Repousar. Qual o silêncio da palavra? Palavra repleta de silêncios pode ser mais bem ouvida”. Com isso, denota-se que a pausa é o substrato de todo o sistema sonoro, pois torna a escuta mais aguçada, realçando as palavras proferidas por alguém que, por conseguinte, colocou-as “em movimento sonoro para o exterior em busca de algum interlocutor”. Portanto, para o estabelecimento assertivo dessas afirmações, o autor valeu-se das contribuições de outros pesquisadores, sobretudo de colegas do Departamento de Artes Cênicas do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (IA-Unicamp).

Nesse caso, enquadra-se o docente Marcelo Lazzaratto, doutor em Artes da Cena pela Unicamp, que assina o prefácio de Entre o ouvido e a voz. Intitulado “Encontros entre substâncias”, o texto de Lazzaratto discorre acerca dos temas abordados e do estilo poético presente no estudo, assim como da carreira acadêmica e da linha de pesquisa na qual se inserem tanto o prefaciador quanto Rodrigo Castro. A obra é estruturada em seis capítulos e uma introdução escrita também pelo autor, trazendo, no seu interior, algumas imagens e excertos de peças teatrais que podem auxiliar os leitores na compreensão das formulações teóricas propostas.

Professor no curso de Artes Cênicas da Unicamp, Rodrigo Spina de Oliveira Castro já foi diretor artístico e tem formação inicial como ator, integrando, entre os anos 2007 e 2022, a Companhia Elevador de Teatro Panorâmico, dirigida por Lazzaratto. A parceria entre os dois professores se estende a essa obra, mormente com as ideias de “Campo de Visão” e de “duplo-contágio” indicadas desde o texto inicial e que são compartilhadas entre ambos os pesquisadores. Retornando ao conteúdo do livro, nota-se a imposição de uma dicotomia entre o tempo presente e uma ancestralidade que remonta à Antiguidade Clássica, ou antes mesmo do tempo de Sócrates e Platão, a uma era na qual o sujeito usufruía de “sua essência coletiva, desejosa de comunicação”.

Dessa forma, o autor conclama que, “entre o ouvido e a voz, estamos nós, querido leitor, cada um de nós, cada qual carregando um mundo próprio, um modo próprio de conceber e de organizar as coisas”. Isso implica algumas complexidades teóricas e de abrangência temática que são naturais a algo tão comum para todos os seres humanos – o ato de falar e, consequentemente, o sentido da audição. No decurso de seu estudo, ele traceja um breve, porém contundente, panorama histórico do “modo de percepção dos indivíduos”, expondo as transformações ocorridas principalmente nas últimas décadas, com a revolução digital, e fazendo igualmente um comparativo com o passado clássico.

“Ator-professor-químico”, Castro promove uma incessante busca pela essência da comunicação, das palavras ditas e ouvidas, dos reais significados que vêm sendo perdidos em um período histórico único – marcado por uma ressignificação frenética e, às vezes, descontrolada. “Entre o ouvido e a voz, há uma palavra, uma palavra que escuta”, uma palavra no seu sentido verdadeiro que deve ser mantido nas conversas corriqueiras, nos diálogos profundos e, do mesmo modo, nas apresentações cênicas. O autor não descarta a indispensabilidade da interpretação de quem escuta e daquele que fala, mas sugere aos atores e atrizes teatrais “que por fim sintam/formulem sua expressão artística antes pela força ‘substantiva’ das essências do que pelos seus traços identificadores”. A voz é o elemento central que, no meio do silêncio e dos sons das palavras, permeia esse caminho do “entre”.

Para saber mais sobre o livro, visite o nosso site!

Entre o ouvido e a voz

Autor: Rodrigo Spina de Oliveira Castro

ISBN: 9788526815742

Edição: 1a

Ano: 2022

Páginas: 224

Dimensões: 14 x 21 cm

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