Por Ana Carolina Pereira
O período colonial foi marcado por exploração e violência, principalmente contra os africanos, que, além de serem levados à força para as Américas como escravos, tiveram as suas regiões dominadas por países europeus. Soma-se à violência física sofrida pelos africanos o saqueamento de suas riquezas, inclusive artísticas e culturais, sendo que muitas das obras de arte roubadas no período da colonização estão até hoje em museus da Europa. Recentemente, têm-se visto notícias sobre países africanos estarem cobrando a devolução de obras de arte que foram saqueadas pelos europeus durante a colonização. O debate parte de vários países da África, como Nigéria, Gana, República Democrática do Congo, República do Congo, Madagascar, Camarões, Mali, Etiópia e Tanzânia, e atinge países europeus como França, Espanha, Reino Unido e Alemanha. No entanto, embora pareça recente, essa reivindicação iniciou-se há mais de 50 anos.
Para desenvolver mais esse debate, a Editora da Unicamp lançou o livro A luta da África por sua arte, escrito por Bénédicte Savoy, com tradução de Felipe Vale da Silva. Savoy é uma especialista no estudo da proveniência de obras de arte, tendo, inclusive, participado da elaboração de um importante relatório que “teve grande impacto sobre a restituição do patrimônio cultural africano”. Atualmente, ela é professora de História da Arte na Universidade Técnica de Berlim. Segundo a autora, o livro “é dedicado àquilo que vem sendo reprimido” e “é a primeira tentativa de escrever a história coerente de um malogro pós-colonial com base na profusão de material a respeito espalhado em inúmeros arquivos europeus e publicações africanas”, sobre as reivindicações de diversos países da África para que seu patrimônio cultural seja devolvido.
A luta da África por sua arte faz parte da coleção Espaços da Memória, que comporta obras que divulgam e aprofundam os estudos do campo de pesquisa da memória. A coleção é interdisciplinar, perpassando a teoria literária, a história, a teoria das artes e os estudos pós-coloniais. O livro é dividido em 16 capítulos, além da Introdução e do Epílogo, e começa no ano de 1965, “com um dos primeiros apelos para a devolução de arte para a África, e termina em 1985, na Ilha dos Museus, na então Berlim Oriental”. A obra conta também com uma linha do tempo, Fontes e Bibliografia, Índice onomástico e Caderno de imagens.
Em 1960, 18 colônias africanas tornaram-se independentes e, por isso, o ano foi chamado de Ano Africano. Bénédicte Savoy menciona, em seu livro, que os pedidos de restituições do patrimônio cultural africano começaram logo após 1960 e deram-se por “intelectuais, políticos e museus africanos”. Isso deixa claro que a discussão sobre devolver à África a sua arte não é nova, como muitos museus e autoridades europeias alegaram nos últimos anos. Nesse sentido, Savoy desenvolve a argumentação do livro de modo a provar que a demanda em questão é antiga e traz um panorama histórico sobre essa luta dos países africanos. A autora aponta que, a partir da metade da década de 1970, os intelectuais, políticos e museus africanos encontraram espaço em organizações internacionais como a ONU, o que ressoou o debate para a televisão e para o jornal. Essa repercussão enfureceu o mercado de arte e as autoridades da área, como Stephan Waetzoldt, que declarou ser “irresponsável render-se ao nacionalismo de países em desenvolvimento” em 1979 para a revista Der Spiegel.
Em A luta da África por sua arte, a autora aponta a dificuldade de “escrever a história de oportunidades perdidas, do sufocamento e da repressão de escolhas históricas”, porque muitas vezes faltam fontes que documentem a questão em foco. Contudo, Savoy diz que, nesse caso, “uma quantidade surpreendente de material espreita sob a camada daquilo que foi esquecido”, e, para desenvolver as suas ideias, a pesquisadora apresenta um corpus vasto de revistas e jornais da época, europeus e africanos. A partir dessas fontes, foi possível concluir que o debate é antigo e isso fez a autora levantar outro importante ponto: o desaparecimento da discussão sobre a restituição de nossa memória coletiva. Em 2017, o presidente da Fundação do Patrimônio Cultural Prussiano disse em entrevista que “a proveniência dos acervos etnológicos é um tema relativamente novo”, mas Savoy prova-nos que “não há nada de novo acerca desse tema” e que nessa própria fundação há arquivos e documentos sobre “restituições (não efetuadas) para o período entre 1972 e 1982: correspondências, memorandos, documentos de estratégia e posição oficial, recortes de imprensa e pronunciamentos”.
No Epílogo, a autora aponta que “quase todas as conversas travadas hoje sobre a restituição de bens culturais à África já foram formuladas há 40 anos” e indaga: “o que isso nos ensina?”. A essa pergunta, Savoy traz três principais pontos em formato de conclusão sobre as discussões travadas ao longo da obra. Em primeiro lugar, a pesquisadora aponta para a dívida cultural que se arrasta desde 1960, quando os países colonizadores europeus se recusaram a devolver o patrimônio cultural de suas ex-colônias. Em segundo lugar, Savoy chama a atenção para o uso do termo “restituição” e afirma que “as restituições não excluem os programas de cooperação e intercâmbio” entre Europa e África. Em terceiro lugar, a autora desenvolve a afirmação “também os museus mentem”, sobre o problema de deixar as informações sobre as aquisições coloniais da África nas mãos das próprias instituições que detêm esse patrimônio.
Cabe à nossa geração assumir a responsabilidade e terminar o serviço que os diretores de museus e funcionários culturais das décadas de 1970 e 1980 negligenciaram deliberadamente: o de promover uma restituição sincera e expedita (tendo em vista o tempo decorrido) dos artefatos levados à Europa no contexto da injustiça da ocupação colonial, algo que vem sendo reivindicado há meio século. Devemos fazê-lo já, e não temos permissão para transferir a responsabilidade para nossos filhos e netos.
A luta da África por sua arte é uma obra de extremo interesse para um público amplo, desde historiadores até pessoas de fora do mundo acadêmico, pois ela traz um panorama histórico sobre uma questão que está sendo apresentada como nova pela Europa, enquanto a África luta por sua arte há décadas. Nesse sentido, o livro é uma forma de trazer justiça para os países africanos ao apresentar o outro lado da história em um mundo eurocêntrico. Um livro bem escrito e bem fundamentado, que é leitura fundamental para pesquisadores dos campos de história, teoria das artes e estudos pós-coloniais.
Para saber mais sobre o livro, visite o nosso site!

Autora: Bénédicte Savoy
ISBN: 9788526815759
Edição: 1a
Ano: 2023
Páginas: 248
Dimensões: 16 x 23 cm