Do passado colonial aos esboços do futuro: uma África sob a óptica de sua ficção

Por Gabriel de Lima

Em 2023, serão completados dez anos da promulgação “da lei n. 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino de ‘História e Cultura Afro-Brasileira’” em todas as escolas do país. Esse momento deve ser celebrado, em especial, por entender que a lei é uma iniciativa para uma reparação histórica e social com os povos africanos e os afrodescendentes que residem ou que trouxeram contribuições para o Brasil. Apesar das diferenças geográficas, étnicas e culturais, teve-se a aproximação das populações dominadas pelo sistema colonial por meio da unificação da língua, que, por conseguinte, subjugou todas as formas de linguagens produzidas nas colônias. Nesse ínterim, “as relações históricas estabelecidas entre o Brasil e o continente africano se iniciaram sobretudo com [essa] intervenção portuguesa através do oceano Atlântico”, ou seja, os colonizadores europeus encontraram no considerado “imperialismo linguístico” uma política efetiva para a concretização da lógica expansionista.

Passados mais de seis séculos no território africano, houve a formação de diversas correntes literárias em várias regiões do continente, sendo marcadas por suas singularidades e pela interlocução com os eventos históricos vivenciados durante e após o percurso colonial. Com a profusão de narrativas ficcionais africanas traduzidas e reeditadas em outros territórios e idiomas – como o Brasil –, subentende-se a necessidade de materiais teóricos que orientem os leitores brasileiros – leigos e especialistas – sobre os principais conceitos artísticos produzidos em solo africano. Sobre isso, a Editora da Unicamp lança a obra Breve dicionário das literaturas africanas, organizada pela pesquisadora e historiadora Fernanda Bianca Gonçalves Gallo.

Incluindo intelectuais “das áreas de história, antropologia e literatura”, o dicionário é composto por 19 verbetes, dispostos em ordem alfabética, que expõem algumas conceituações compartilhadas pelos(as) autores(as) africanos(as) em seus processos de escrita. Apesar de serem escritos inicialmente para falantes de português, os textos não possuem uma preferência por abordar somente a literatura concebida na África lusófona, ampliando, inclusive, para “outros horizontes de pesquisa [que] vêm sendo requisitados, incluindo aqueles que não necessariamente passam pelo oceano Atlântico ou pela língua portuguesa como lente analítica”. De acordo com a organizadora, além de questões étnicas e linguísticas, ressaltar a autoria feminina estritamente do continente africano é também fundamental no livro, sobretudo para que se entenda as relações de gênero existentes nas várias sociedades africanas. 

No sentido geral, a obra atende aos professores dos ensinos primários e secundários e, ao mesmo tempo, aos pesquisadores de teoria e crítica literária. Ao servirem como estudos de referência, “os verbetes […] situam e problematizam conceitos, indicam possíveis caminhos teóricos e abordam o relevante papel da literatura na história recente do continente africano”. Nesse sentido, eles são distribuídos em quatros conjuntos temáticos que pretendem detalhar, de forma pormenorizada, em quais sentidos e espaços esses termos apareceram no panorama artístico africano. Como exemplo disso, a filóloga Marta Banasiak assina o verbete “Negritude”, no qual discorre sobre benefícios e controvérsias desse que foi “considerado o primeiro movimento literário a promover uma conscientização da africanidade em oposição direta ao olhar redutor cultivado pela lógica colonial”.

Além de presente e passado, o texto “Afrofuturismo”, redigido por Jamile Borges da Silva, elucida como essa corrente estética e filosófica se propagou, nas últimas décadas, em todo o território africano. A capacidade imagética dos escritores foi aflorada, segundo Silva, para conceber “as mais diferentes possibilidades de futuro” e, por conseguinte, para romper com o cenário sociopolítico atual – que ainda tem vestígios do imperialismo europeu. No caminho entre o ficcional e o real, a organizadora Fernanda Gallo enfatiza, desde a Apresentação do Breve dicionário das literaturas africanas, a necessidade de se compreender a importância dos diálogos da história com a literatura na reorganização da estrutura social e cultural dos povos africanos. Nesse sentido, resgatar as significações originais de termos como “tradição” é também essencial para combater estereótipos e prejulgamentos infundados.

Integrante do Kaliban – Centro de Pesquisa em Estudos Pós-Coloniais e Literatura Mundial da Unicamp –, Fernanda Gallo é coorganizadora também da publicação A obra literária de João Paulo Borges Coelho: panorama crítico, na qual aponta, com Elena Brugioni e Gabriela Beduschi Zanfelice, a sofisticação e a originalidade da criação do escritor moçambicano. Gallo é doutora em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas, retornando recentemente a essa mesma instituição para dar início ao pós-doutorado em Teoria e História Literária. Além da função de organizadora do livro Breve dicionário das literaturas africanas, a pesquisadora redigiu o verbete “História e literatura”, que objetiva traçar pontos de contato entre esses dois campos do saber humano.

Mesmo citando alguns dos textos que compõem a obra, isso não é capaz de reproduzir a grandiosidade dos assuntos tratados na publicação, dado que muitas reflexões são provocadas por todos os autores “sobre os mais variados campos de saber no que se refere ao vasto e complexo continente africano, incluindo sua igualmente diversa produção literária”. 

Breve dicionário das literaturas africanas é decorrência de um “conjunto de reivindicações de movimentos sociais diversos”, que tentam visibilizar e ressignificar o papel que o continente africano exerceu no desenvolvimento das Américas. Sabendo-se da vastidão territorial e literária que reflete as muitas Áfricas existentes, Fernanda Gallo arremata a obra, dizendo que “elaborar um dicionário é ter consciência de que ele nunca estará completo”, porém a presente publicação tenciona ser, ao menos, uma iniciativa na produção de estudos críticos e teóricos sobre as literaturas africanas.

Para saber mais sobre o livro, visite o nosso site!

Breve dicionário das literaturas africanas

Organizadora: Fernanda Gallo

ISBN: 9788526815728

Edição: 1a

Ano: 2022

Páginas: 288

Dimensões: 16 x 23 cm

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