Novo Mundo, novos dilemas: um estudo no trânsito da modernidade

Por Gabriel de Lima

Por volta do ano de 985, os povos nórdicos tiveram um primeiro contato com as comunidades originárias da atual Groenlândia. Tendo provavelmente conhecimento disso, o ilustre genovês Cristóvão Colombo, valendo-se das tratativas passadas para a sua empreitada marítima, em 1492, também rumou para o sudoeste do oceano Atlântico. Acreditando na hipótese de que desembarcaram em um jardim edênico, os entusiasmados marinheiros do Velho Mundo produziram, por escrito, relatos de viagem daquilo que encontraram. A Carta de Achamento do Brasil de Pero Vaz de Caminha, as descrições de André Thévet e de Jean de Léry são exemplos desse gênero textual desenvolvido nas primeiras incursões europeias na costa americana.

Havendo um vasto e rico acervo de arquivos a respeito dos primórdios da colonização, tem-se a necessidade de estudos que não apenas compilem os documentos encontrados e preservados, mas que analisem e tracem um panorama sócio-histórico associado a esses artefatos, podendo haver – ou não – a intersecção de outras obras referenciais que deram início aos estudos coloniais no Brasil. Um livro que principia “do século XV (primeiras grandes navegações pela costa africana) até o XIX (colonização moderna nos Estados Unidos e no Brasil)”, Novo mundo: metamorfoses da colonização é escrito pelos pesquisadores João Quartim de Moraes e Ligia Osorio Silva e percorre 500 anos da história ocidental. Assim, a obra torna evidentes “as diferentes configurações assumidas pela colonização europeia” nas Américas.

Em um diálogo intenso entre o Velho e o Novo Mundo, os autores do livro pretendem demarcar o percurso histórico europeu, com o objetivo de proporcionar uma completa compreensão do sistema colonial transatlântico. Para isso, é fundamental entender o desembarque de frotas marítimas no litoral americano como um evento que integra um projeto expansionista previamente concebido. A gênese, segundo o livro, seria “a conquista das Canárias” nos séculos XIV e XV, sendo destacada por ser um acontecimento antecedente e por possuir uma conexão com o sistema escravocrata moderno. Sendo assim, delimitar e reafirmar as definições de modernidade torna-se também vital para a não concepção de comparações indevidas sobre a escravidão na história humana, considerando que essa forma de exploração humana não é algo exclusivo da colonização europeia nas Américas, porém a Era Moderna trouxe novas significações à palavra “escravidão” – como questões étnicas e raciais.

As modificações geopolíticas e sociais nas comunidades europeias – a consolidação das classes burguesas em todo o continente e o declínio do feudalismo, por exemplo – viabilizaram a formação de Estados Modernos, que, por conseguinte, centralizaram o domínio territorial e econômico no Velho Continente. A respeito disso, o livro Novo mundo trata de forma pormenorizada e cuidadosa os passos que antecederam a atracação das naus europeias em solo americano, recuperando documentos mantidos “em duas Bibliotecas Nacionais, a da Espanha e a da França, onde foi recolhido material original de difícil acesso”. Outra questão explicitada no volume é o “mito do bom selvagem” – tese que valorizava a figura do indígena por simbolizar o ser humano em seu estado natural, puro e inocente –, que remonta às “utopias anteriores e posteriores a Rousseau, especialmente na literatura do século XVIII”. Porém, é importante afirmar que isso não se manteve restrito apenas ao âmbito ficcional, imperando, inclusive, em ações políticas tomadas pelos governantes europeus no decorrer dos séculos.

Professor colaborador do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp), João Quartim de Moraes assina os três primeiros capítulos da obra, nos quais elucida a iniciativa do sistema colonial até a sua implementação em escala global e apresenta a narrativa do colonialismo como uma construção ideológica. A respeito de sua renomada e extensa carreira científica, Moraes elaborou pesquisas nas áreas de Humanidades, sobretudo em história da filosofia antiga, marxismo, materialismo antigo e moderno, instituições brasileiras e teoria política.

Autora dos dois últimos capítulos da obra, Ligia Osorio Silva é professora aposentada do Instituto de Economia da Unicamp e sempre trabalhou com temas relacionados a propriedade da terra, fronteira e Estado e pensamento econômico. Apesar de ramos distintos de pesquisa, ambos os escritores empregam “perspectivas [de análise que] são convergentes e complementares” ao livro, o que auxilia nas pesquisas teóricas e metodológicas acerca do sistema escravocrata moderno, jogando luzes sobre as contradições e incoerências do discurso colonial.  Em “Do jardim edênico aos espaços ‘vazios’” e “O Império do Brasil e a emigração francesa”, Ligia indica e analisa os estágios da relação entre os colonizadores e as comunidades ameríndias, abrangendo desde a curiosidade inicial até as políticas de extermínio indígena.

A passagem entre o tempo passado e a contemporaneidade é um mecanismo bem usufruído no livro, dado que a “densa trama dos fatos formadores das [atuais] sociedades de nosso continente” data suas origens do primeiro contato de Colombo com as comunidades caribenhas. De São Vicente para Lisboa, de Barcelona para o Cabo da Boa Esperança, o sistema colonial entranhou-se nas dinâmicas e relações sociais em todo o Atlântico. De acordo com os pesquisadores, houve, durante esse processo, a introdução de ideologias e valores burgueses que são quase sempre incompatíveis com as práticas identitárias dos colonizados – como, por exemplo, a ideia de “propriedade [privada] absoluta e incondicional” que já tinha transformado a disposição territorial na Europa.

Tentando resolver os impasses demográficos – a oferta abundante de mão de obra aliada ao enorme excedente populacional nas metrópoles europeias –, a imigração em massa de pessoas oriundas do Velho Mundo trouxe, nos deques das embarcações, outras complexidades que são meticulosamente analisadas no livro, como a desilusão acerca das condições de trabalho que os imigrantes encontraram nas Américas e a propagação de levantes populares descontentes com os governos coloniais. Em suma, todos os pontos listados refletem a engenhosidade de João Quartim de Moraes e Ligia Osorio Silva na constituição de um estudo profícuo e abrangente. O perigo de uma narrativa histórica única, sem as devidas contrabalanças teóricas, é o que justifica a demanda por obras críticas como Novo mundo: metamorfoses da colonização – uma publicação voltada principalmente para educandos e educadores dos estudos coloniais no Brasil.

Para saber mais sobre o livro, visite o nosso site!

Novo mundo: metamorfoses da colonização

Autores: João Quartim de Moraes e Ligia Osorio Silva

ISBN: 9788526815711

Edição: 1a

Ano: 2022

Páginas: 264

Dimensões: 16 x 23 cm

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