Por Gabriel de Lima
A automatização das cadeias produtivas incidiu em mudanças no modo como as relações humanas eram estabelecidas até antes das revoluções; isso, em sequência, refletiu na industrialização dos meios de produção artística e das temáticas retratadas pelas artes, provocando embates em uma vertente filosófica – surgida desde a era clássica – que se debruça sobre as balizas definidoras do que pode ser considerado como arte. No século dos traumas, pode-se centralizar esse debate em duas figuras ilustres e compatrícias: Theodor Adorno, pensador alemão que entende as obras artísticas como verdadeiras antíteses da dinâmica social gerida pelo sistema capitalista, e Walter Benjamin, adepto da concepção de que a tecnologia de reprodução produz um efeito de massificação benéfica à própria arte.
Os maquinários artísticos inventados tornaram-se objetos de disputa e de conflitos ideológicos, resultando em uma cacofonia de percepções destoantes sobre esses artefatos e seus efeitos. Apesar disso, nota-se uma internalização dessas (re)produções artísticas na cultura ocidental e, posteriormente, mundial, abrangendo sobretudo as camadas populares que são a base da pirâmide social capitalista. Analisando o panorama da contemporaneidade, o que implica considerar a gênese do “homem” moderno, Fernando de Tacca compartilha da noção benjaminiana sobre a interlocução proveitosa entre o cômico e o trágico, entre o baixo e o elevado, entre as massas e os saberes artísticos. Isso se encontra notório no livro Imagens improváveis, produzido por Tacca e publicado pela Editora da Unicamp em formato digital.
As imagens, realizadas pelo fotógrafo entre os anos de 2018 e 2022, “mergulham suas raízes no modelo comunicativo definido pela linguagem da Modernidade”, uma era marcada pela improbabilidade – que, de forma paradoxal, é também um indicativo da concretização do não racional – e imprevisibilidade do futuro conduzido pela civilização humana. Fundamentada na heterogeneidade estilística e de procedimentos utilizados, as obras incluídas nessa publicação expõem como “a perda da unicidade imagética se desprende para amplas possibilidades relacionais: dialógicas, complementares, díspares, lineares, narrativas, identitárias, temporais, contraditórias, fragmentadas e muitas outras possíveis nas subjetividades conscientes ou inconscientes de cada sujeito que olha para as imagens”.
A surpresa e o desconhecimento perante as imagens fazem parte desse caráter improvável citado no título do livro. Esse mecanismo não está, necessariamente, relacionado com as obras inventivas surgidas do zero, mas pode ser resultado de combinações harmônicas ou não, da “associação de elementos que, ao se unirem, fazem aparecer outra coisa que se define precisamente por esse encontro”. A essa “coisa” denomina-se díptico, que condiz ao produto da junção de duas obras – congêneres ou distintas. Isso, além de amplificar a capacidade imagética e de possibilidades de sentido, deve ser “tratado como elemento-chave para entender como funciona a linguagem do mundo moderno”, um idioma bem usufruído por Fernando de Tacca em suas obras. Assim, para falar sobre arte, é essencial discorrer sobre as sociedades e os modos como são sistematizadas.
Ao compreender o maquinário fotográfico como um artefato concebido no centro do capitalismo, Tacca e outros artistas periféricos no cenário mundial têm como proposição o desenvolvimento da “desfotografia”, uma contraposição ao imperialismo cultural do Ocidente. O prefixo latino “des” sinaliza uma negação, que, nessa conjectura, busca reaver os ditames – oficiais ou subentendidos – que regem a produção fotográfica em escala global. “Negar a fotografia é reordenar a lógica do funcionamento de sua tecnologia em favor do plural e do não programado.” Com isso, elementos que não são normalmente retratados, denotados como não fotografáveis, ausentes e/ou postos nas sombras, são esses que o autor brasileiro põe em evidência ao longo de Imagens improváveis.
Mais do que o sentido de veracidade, o valor cultural concedido à luz diz respeito à legitimação de narrativas, corpos, comunidades e etnias, transcendendo o debate puramente técnico e artístico. Nessa toada, o livro é acompanhado de alguns textos complementares que cooperam para o entendimento imagético e filosófico das obras criadas por Fernando de Tacca. Na “Apresentação”, Antonio Ansón discursa brevemente sobre o percurso da Arte Moderna, “desde as vanguardas até os dias de hoje”, e as percepções variadas tidas acerca da industrialização do fazer artístico. Nos dois capítulos que antecedem às fotografias, Fábio Luiz Oliveira Gatti, professor na Universidade Federal da Bahia, e Paula D. Tacca, doutora em História da Arte pela Universidade Estadual de Campinas, entendem, ao propor teorizações amparadas nas discussões acadêmicas realizadas durante essa “era da reprodutibilidade”, que “a fotografia é somente um substantivo composto cuja nomeação nada diz”, o que suscita o trabalho a ser desempenhado por críticos e teóricos da arte no processo de significação das obras imagéticas.
A respeito do autor, docente no Instituto de Artes da Unicamp, Fernando Cury de Tacca já fez o uso previamente da “desfotografia” em outras publicações – Desmonumentalização (2013-2014) e Souvenirs (2018) –, porém isso é maximizado em Imagens improváveis. A desconstrução e o experimentalismo somam-se na formação de um estilo fluído, plural e revolucionário. “A associação entre elementos díspares, a reconstrução de sentidos e significados”, a promoção de discussões sobre como o apagamento cultural se tornou um ato normalizado na Modernidade – a dicotomia de luz e sombra – e a preocupação de se ter a dúvida e a contestação como fontes inspiracionais, todos esses apontamentos culminam em uma “fotografia [que] pode captar o real”.
Descentralizar o modus procedendi artístico, segundo Walter Benjamin, permite romper com a aura que envolvia esse campo das humanidades – quase sempre restrito e inacessível para os sujeitos marginalizados ou subjugados pelo colonialismo. Reabrir cicatrizes históricas é transgredir o sistema, e Fernando de Tacca, ao mesmo tempo que se coloca como indivíduo participante de uma “era da reprodutibilidade”, proporciona uma obra – ou várias obras – estruturada artisticamente no improvável. Diante disso, pode-se dizer que a improbabilidade se transformou, na atualidade, em uma alternativa à ordem estabelecida, uma inevitabilidade e uma verdade cosmológica no panorama social contemporâneo.
Para saber mais sobre o livro, visite o nosso site!

Autor: Fernando de Tacca
ISBN: 9788526815698
Edição: 1a
Ano: 2022
Formato digital