Sem Colombos e sem Américos, um continente estruturado na diversidade

Por Gabriel de Lima

De acordo com a narrativa oficial, foi em 1492 que os navegadores europeus desembarcaram no litoral caribenho, mais especificamente em uma ilha que pertence hoje às Bahamas. Esse ano marca uma ruptura na estrutura da civilização americana, dado que houve a implosão da configuração social dos povos pré-colombianos em consequência das políticas genocidas adotadas pelos colonizadores. Passado mais de cinco séculos, as comunidades indígenas ainda padecem das mais diversas formas de extermínio – seja a respeito de seus próprios corpos, seja dos componentes culturais e linguísticos, seja do patrimônio artístico milenar. Um panorama histórico compartilhado por toda a América Latina, esta sendo um continente plural e heterogêneo antes mesmo da invasão violenta do maquinário colonial.

Partindo dessas considerações, além da indispensável preservação étnica e cultural, o acesso público aos acervos materiais das comunidades originárias americanas torna-se fundamental em um mundo da informatização e globalizado. A Editora da Unicamp publica, em uma parceria com a Editora Splender, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), a obra Arte e arqueologia da América indígena: a Coleção Pré-Colombiana Cerqueira Leite. A obra organizada por Alexandre Guida Navarro e Denise Maria Cavalcante Gomes reúne “793 artefatos, dentre os quais 194 fragmentos e 599 peças inteiras; em especial, artefatos arqueológicos de regiões que hoje formam o Brasil, o Peru, a Colômbia, o México, o Equador, o Panamá, a Guatemala, Honduras, as Antilhas e a Costa Rica”.

O ilustre físico paulista Rogério Cézar de Cerqueira Leite sempre nutriu, em paralelo a sua carreira docente e de cientista renomado, uma admiração “pelas Artes em geral”, que o levou a ser um respeitadíssimo colecionador com um “rico acervo amealhado durante décadas”. Uma dedicação duradora do pesquisador brasileiro que se reflete na magnitude de cada artefato arqueológico que integra a sua Coleção, pois os exemplares pré-colombianos, mencionados e exibidos ao longo do catálogo, “permite[m] vislumbrar aspectos surpreendentes da vida diária e cultural de diferentes povos e lugares” das Américas, transportando os leitores para a cordilheira dos Andes, para o golfo mexicano, para as florestas exuberantes da Amazônia. Isso realça a diversidade geográfica e de visões de mundo que sempre imperou nesse continente – ou nesses vários subcontinentes.

Ao observar os itens arqueológicos da Coleção, constata-se a presença de elementos humanos, zoomórficos, da flora e místicos – como os xamãs, por exemplo, que representam “um portal que liga o mundo visível e o invisível” –, informação essa que convalida a alegação de que as produções artísticas indígenas não são meramente objetos sem significações, visto que elas carregam, em si mesmas, um valor cultural e imaterial que transcende qualquer simples análise de suas funcionalidades. É possível atestar, com base em Arte e arqueologia da América indígena, que existe uma verdadeira relação intrínseca entre “a prática artística e a religião”, entre o conhecimento científico ou empírico e as mais diversas expressões artísticas manifestadas pelas populações pré-colombianas.

Fato a ser sempre considerado, os debates filosóficos basilares que os povos originários travaram no decorrer dos séculos produziram uma perspectiva singular de mundo, que transpassa nos artefatos arqueológicos expostos no livro. Para elucidar isso de forma pormenorizada, a obra é acompanhada de alguns textos adicionais que foram escritos por especialistas em Arqueologia, em Antropologia e em Arte e Cultura pré-colombiana. Indo do diretor da Galerie Furstenberg em Paris, Jean Christophe Argillet, e passando por Marcelo Knobel e Pedro Paulo Abreu Funari, ambos professores da Unicamp, é plausível afirmar que essas seções complementares ao livro, além de trazerem questões pertinentes à contemporaneidade e/ou relativas aos estudos sociais desenvolvidos dentro do âmbito acadêmico, proporcionam uma melhor compreensão, por parte do público leitor, da pluralidade identitária daqueles que primeiro povoaram as Américas.

O presente catálogo é organizado por Alexandre Guida Navarro, doutor em Antropologia pela Universidade Nacional Autônoma do México (Unam), e Denise Maria Cavalcante Gomes, professora associada do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Vislumbra-se, em Arte e arqueologia da América indígena, um empenho máximo de ambos os organizadores para que as peças arqueológicas sejam entendidas tanto como artefatos culturais e representativos de uma determinada etnia quanto como partes integrantes do ideário ameríndio e, por que não dizer, da civilização pré-colombiana na sua completude. 

Paralelo a isso, é pertinente destacar também as conexões entre o corpo – que “é [tido como] o lugar da experiência vivida” – e as “criações materiais, fazendo com que haja uma relação de simbiose entre todos os componentes envolvidos, i.e., pessoas e objetos, atuando socialmente uns com os outros”. Desse modo, a obra abarca vários eixos temáticos, sendo talvez um reflexo da abrangência de seu provável público leitor, centrando-se, em primazia, aos estudiosos e entusiastas da “chamada Arqueologia Social Latino-Americana”, campo arqueológico esse que foi estruturado na segunda metade do século passado. Sob o prisma decolonial – sempre muito explorado na atualidade –, o ponto neural no processo de apagamento cultural de povos colonizados e subjugados é o dito “memoricídio”, que tem a não preservação material como um de seus atos mais impiedosos.

A continuidade de velhas problemáticas, como as que foram expostas anteriormente, ressalta a relevância acadêmica e social dessa publicação, pois o imperialismo europeu seguido do fenômeno da globalização implicou, sem exceção, uma certa homogeneização cultural. Ao final da leitura de Arte e arqueologia da América indígena: a Coleção Pré-Colombiana Cerqueira Leite, torna-se explícito “a necessidade de rever certos protagonismos e [de] valorizar a sabedoria e a imaginação de outros povos, em outros tempos”, rompendo o círculo vicioso da colonização que ainda faz vítimas nos dias atuais. Mais do que os discursos nacionalistas, que são anacronismos quando relacionados aos povos pré-colombianos, a recuperação material feita pelos arqueólogos é, na verdade, uma recuperação de narrativas, de memórias e de visões de mundo quase exterminadas pelo modus operandi do colonizador.

Para saber mais sobre o livro, visite o nosso site!

Arte e arqueologia da América indígena: a Coleção Pré-Colombiana Cerqueira Leite

Organizadores: Alexandre Guida Navarro, Denise Maria Cavalcante Gomes

ISBN: 9788526815605

Edição: 1a

Ano: 2022

Páginas: 480

Dimensões: 23 x 28 cm

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