O escândalo do dizer, do amar e do prometer

Por Beatriz Burgos

Na década de 1950, o filósofo da linguagem John Langshaw Austin defendeu sua teoria de fala performativa, isto é, argumentou que dizer é transmitir informações, mas é também (e sobretudo) uma forma de agir sobre o interlocutor e sobre o mundo que o circunda. Segundo ele, portanto, o ato de fala constitui a realidade. Alguns anos depois, o psicanalista Jacques Lacan, ao definir o discurso como “vínculo social”, utilizou a mesma expressão com a qual Austin caracterizou os atos de fala, e, com isso, introduziu na dimensão da linguagem algo que é da ordem da pragmática. Segundo ele, o discurso psicanalítico, assim como o performativo, impacta a história como “uma epidemia científica”, ou seja, “quando alguma coisa é tomada como uma simples emergência, quando é de fato uma ruptura radical”. E essa ruptura radical seria provocada por um corpo que fala pela letra – par la lettre, parlêtre –, um corpo falante.

A partir disso, articulando a teoria de Austin sobre o performativo com as ideias de Lacan, sobretudo no que se refere aos entendimentos de lettre e de parlêtre, Shoshana Felman, crítica literária e professora de literatura comparada da Universidade Emory, nos Estados Unidos, inaugura um de seus conceitos fundamentais. Em O escândalo do corpo falante – Don Juan com Austin, ou a sedução em duas línguas, o conceito de “corpo falante” é apresentado e desenvolvido lado a lado com a teoria literária. A partir de uma preciosa articulação entre a letra/carta e o corpo, e o ser, a letra e o sujeito – este último tomado em sua dimensão de “ato discursivo” como o “animal promitente” por excelência –, Felman relê a figura do personagem Don Juan no texto dramatúrgico de Molière, de forma a nos fazer reler as noções de ato, na conjunção entre a teoria dos atos de fala com a teoria psicanalítica, mas sobretudo no atravessamento radical operado pela “coisa literária”, em sua formulação autoral de “corpo falante”.

A obra, publicada na França e nos Estados Unidos, na década de 1980, ganha agora uma edição brasileira lançada pela Editora da Unicamp, com tradução de João Rocha e Lucia Castello Branco. O livro integra a Coleção Letras da Psicanálise, que pretende não apenas tornar públicos os títulos que se consagraram como clássicos na área, como, principalmente, estender o seu domínio para temas atuais dentro do campo das relações entre os estudos sobre a linguagem (em seus diversos desdobramentos) e a psicanálise.

No Brasil, são poucos os trabalhos que articulam o pensamento lacaniano ao pensamento de Austin. O conceito de Shoshana Felman chega ao país, por via da psicanálise, como se fosse um conceito do próprio Lacan, ou de uma certa “orientação lacaniana”, como sinônimo do parlêtre. E, segundo os tradutores da obra, isso não é preciso, tampouco convincente. “A aproximação do ‘corpo falante’ ao parlêtre, a própria Felman insinua-a a partir da aproximação entre o pensamento de Lacan e o de Austin, sobretudo no que se refere ao ato performativo – ato de fala, ato analítico.”

Ainda segundo os tradutores da obra, “o escândalo do corpo falante é que, ao falar, o sujeito não diz o sentido, mas promete dizê-lo. E o campo da promessa é o mesmo do desastre, isto é, estamos fadados a fracassar, a não cumprir a palavra empenhada, a dar o que não temos. Nesse sentido, segundo Felman e sua leitura de Don Juan, prometer é amar”. A autora coloca:

O escândalo, segundo Austin, remonta, então, à lógica performativa do “dom do que não se tem”, pela qual, por outro lado, Lacan define precisamente o amor. O escândalo, em outros termos, é sempre, de uma certa maneira, aquele de uma promessa de amor, aquele mesmo do insustentável, ou seja, ainda e sempre, o escândalo – donjuanesco por excelência – do animal promitente, incapaz de sustentar sua promessa, incapaz de não fazê-la, impotente ao mesmo tempo para cumprir o engajamento e para não se engajar, jogar acima de seus meios, jogar, precisamente, com o diabo: o escândalo do corpo falante que, de sua falta a si e aos outros, faz ato e faz a história.

Assim, em O escândalo do corpo falante, a autora contempla a promessa sedutora do discurso e a promessa sedutora do amor. Propondo um encontro entre Don Juan de Molière e J. L. Austin – entre uma figura ficcional do teatro clássico francês e um filósofo do século XX –, ela explora a relação entre a fala e o erótico, usando um texto literário como base para um enlace inovador entre a filosofia, a linguística e a teoria psicanalítica lacaniana. 

Nos anos desde a primeira publicação desse livro (que a autora hoje chama de “o mais ousado, o mais provocativo, mas também o mais divertido” que ela já escreveu), a teoria dos atos de fala continuou a desempenhar um papel central e definidor nas teorias de sexualidade, gênero, estudos da performance, estudos pós-coloniais e estudos culturais. Felman, indo além do domínio da análise linguística formal para abordar essas questões, escreveu um livro ousado e sedutor e que permanece atual.

Para saber mais sobre o livro, visite o nosso site!

O escândalo do corpo falante – Don Juan com Austin, ou a sedução em duas línguas

Autora: Shoshana Felman

ISBN: 9788526815612

Edição: 1a

Ano: 2022

Páginas: 192

Dimensões: 14 x 21 cm

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