Por Ana Carolina Pereira

A filosofia do período clássico moveu o estudo das mais diversas áreas e pautou muitos conceitos que servem como base ainda hoje para a sociedade atual, como os questionamentos sobre lei e direito. Sócrates, Platão e Aristóteles são os filósofos antigos mais famosos, conhecidos por terem influenciado filósofos modernos. No entanto, eles também impactaram a produção de estudiosos da Grécia e Roma antigas, resultando em inspiração para alguns e refutação para outros. Cícero foi um dos filósofos influenciados pelos estudos gregos, o que pode ser visto em suas reflexões políticas sobre Roma. Porém, mesmo com essa influência, a produção de Cícero vale-se por si só e tornou-se muito relevante para a filosofia que veio posteriormente, tanto romana quanto moderna.

Marco Túlio Cícero (em latim: Marcus Tullius Cicero) foi um advogado, político e filósofo de Roma que marcou a política romana e exerceu importante influência na filosofia ocidental. Cícero (106-43 a.C.) foi educado sobre os grandes nomes gregos, podendo falar tanto esse idioma quanto latim, o que possibilitou que ele traduzisse diversos conceitos da filosofia grega para o latim. Desde jovem, ele mostrou-se habilidoso para o estudo do direito romano, o que o levou a fazer o cursus honorum para seguir na política. Sendo um dos maiores oradores e escritores da Antiguidade, sua obra é vasta, mas muitas não sobreviveram até os dias atuais ou ficaram fragmentadas. Retomando uma dessas importantes obras, a Editora da Unicamp publica As leis, uma versão bilíngue (português-latim) do livro De legibus de Cícero. 

As leis é uma coedição com a Edufu (Editora da Universidade Federal de Uberlândia) e surge para suprir uma lacuna nos estudos clássicos por falta de obras desse tipo. Sendo uma versão bilíngue, a tradução é assinada por Bruno Fregni Bassetto, que foi um importante filólogo, tradutor e professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Mesmo o livro original de Cícero estando fragmentado e com lacunas, a obra é muito relevante tanto para o estudo da filosofia, quanto para os estudos de letras clássicas. João Bortolanza, no Prefácio do livro, coloca a importante questão: “qual teria sido o destino da Filosofia do Direito Universal dos estoicos, não fosse a contribuição de Cícero?”. Essa é uma das evidências da importância de As leis para a sociedade ocidental.

Teoriza-se que a obra As leis é, originalmente, composta por cinco livros escritos entre 52 e 51 a.C. e que foi interrompida quando Cícero partiu como pró-cônsul da Cilícia. Contudo, apenas foram recuperados os livros I, II e III, com muitas lacunas e incompletos. A obra é feita por diálogos, sendo os personagens “ele próprio, Marcos e seu irmão, Quinto, além do seu grande amigo e editor, Tito Pompônio Ático. A data do diálogo coincide com o tempo real, e o local é Arpino, ‘perto do rio Líris’”. No livro I, Cícero busca a natureza das leis. No livro II, examina as leis romanas com o objetivo de mostrar que “a Cidade Ideal é a própria Roma que os antepassados construíram”, afastando-se do que propunha Platão. Por fim, o livro III foca nos magistrados.

É esse Cícero orador-filósofo que podemos encontrar nesta edição bilíngue de mais uma obra que marcou definitivamente o Ocidente. De um lado, pode-se ir ao texto ciceroniano, com a edição da Loeb, e defronte, contempla-se a excelente tradução de Bassetto, que, vencendo os desafios de um texto cheio de lacunas e valendo-se de notas frequentes e elucidativas, permite-nos uma leitura agradável e um estudo aprofundado do pensamento filosófico ciceroniano.

Na Roma Antiga, a oratória era considerada uma arte e Cícero detinha-a. Ele começou a ter reconhecimento como advogado e muitos consideram que a ascensão política do filósofo foi possível devido a suas reconhecidas habilidades como orador. Cícero foi questor em 75 a.C. (31 anos), edil em 69 a.C. (37 anos), pretor em 66 a.C. (40 anos) e cônsul em 63 a.C. (43), quando “desbaratou a Conjuração de Catilina”. Seu envolvimento com a política resultou-lhe em dois exílios, o primeiro entre 79 a 77 a.C., e o segundo entre 58 a 57 a.C. Ao voltar do segundo exílio, os tempos tinham mudado: “embora aclamado “Pai da Pátria” na sua volta a Roma, sentiu que seu poder de político-filósofo não era tão decisivo”. Isso o fez dedicar-se à filosofia, surgindo, então, a trilogia De oratore, em 55 a.C.; De re publica, seis livros entre 54 e 52 a.C.; De legibus/As leis, “que, muito incompleto e cheio de lacunas, não publicado em vida e sequer mencionando por ele nas outras obras, constitui uma obra fundadora do Direito do Ocidente”.

Além de seu objetivo como político de se tornar “o renovador da antiga ordem”, Cícero, como pontua João Bortolanza, “como filósofo romano, tem outro grande objetivo, de dotar Roma de uma obra filosófica que não venha a dever à Grécia”. A influência do filósofo aumentou ainda mais na Alta Idade Média, na Europa, atingindo muitos filósofos medievais com os seus estudos sobre direito natural. Ele teve papel fundamental no Renascimento após a redescoberta da Antiguidade Clássica, tornando-se um sinônimo do latim clássico. Nesse sentido, é possível colocar a obra de Cícero como uma das mais relevantes da história da humanidade, ao passo que, ainda hoje, é muito lida e vítima de inúmeros estudos em campos do direito, da filosofia e das letras clássicas. 

O livro As leis atende o público dessas áreas e cumpre o compromisso das Editoras envolvidas com a disseminação e acessibilidade do conhecimento, considerando a pouca presença no mercado editorial de versões bilíngues de De legibus. Como finaliza Bortolanza, “temos em mãos um livro fragmentado, mas fundamental, fundador de uma nova era, em que os estoicos, tão cultivados no Império Romano, se tornaram os pais do jus naturale, do jus gentium e do jus civile”. A leitura desse livro é fundamental para os estudiosos e amantes da obra de Cícero.

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