Uma democracia racializada e a pluralização de narrativas

Por Gabriel de Lima

O Brasil colonial, segundo Gilberto Freyre, seria formado somente pela constante e harmoniosa relação entre a casa-grande senhorial e as senzalas – precárias habitações nas quais viviam aqueles que eram escravizados. Nesse sentido, pode-se considerar, com o exemplo do sociólogo pernambucano, que, em plena efervescência da ditadura varguista, tem-se uma das primeiras gerações de intelectuais nacionais que elegem a população afro-brasileira, ex-escravizada e marginalizada como um elemento constituinte da civilização brasileira, mesmo que fosse concedida a ela um papel de coadjuvante e de subalternidade. A partir de um vaivém político que é característico da República brasileira, percebe-se, em um contexto de imensa repressão do Estado Novo, o surgimento tanto de grupos de pensadores negros quanto das primeiras organizações sociopolíticas que representam os anseios da população negra.

Isso posto, deve ser ressaltado o caráter ficcional e utópico da narrativa neocolonialista de que a sociedade nacional foi edificada em bases harmoniosas e não aguerridas; sendo que os letrados negros, embora antes considerassem a “democracia racial” como um caminho progressista, foram os primeiros a detectar, durante os anos 1970, as incongruências nesse discurso oficial apaziguador e inibidor. Com esse retrospecto histórico, a historiadora argentina Paulina L. Alberto publicou, pela Editora da Unicamp, a obra Termos de inclusão: intelectuais negros brasileiros no século XX, um estudo crítico que aborda a trajetória de uma classe de pensadores afrodescendentes, residentes nos principais centros urbanos brasileiros, por mais de oito décadas – sobretudo de 1900 a 1980 –, relatando os rumos tomados por eles e elas de acordo com a realidade política nacional e global existente.

No livro, o exame da população negra fica triplamente circunscrito: social, temporal e espacialmente. A autora inicia sua pesquisa em São Paulo, alvo das ondas imigratórias europeias, considerando o fato de existirem, desde 1900, jornais confeccionados e direcionados para os afrodescendentes que eram uma minoria da sociedade paulista. Um pouco mais ao norte, o centro governamental brasileiro, Rio de Janeiro, é analisado na obra historiográfica a datar do fim da belle époque, quando aparecem rodas de intelectuais negros, sendo que é interessante o vínculo destes com os morros cariocas, regiões periféricas que foram verdadeiros redutos de uma certa ancestralidade africana. De maioria negra, Salvador é o último destino da escritora, demonstrando a construção, na cidade litorânea, de contradiscursos sobre o papel histórico do afro-brasileiro que contrastavam com a visão oficial de uma “democracia racial”.

Dessa forma, pode-se denotar que “Termos de inclusão entrelaça essas subtramas regionais” que, de acordo com as suas especificidades populacionais e socioeconômicas, têm diferentes recepções da ideia nacional concebida sobre a população negra. Todavia, é necessário atentar para a perspectiva pela qual a pesquisadora argentina analisa a reprodução desse processo sociológico brasileiro: o estudo de Paulina L. Alberto é protagonizado por um reduzido grupo de afrodescendentes letrados e, em vista disso, pensadores e representantes da causa negra no século XX. 

Munida dessas e de outras informações provindas de uma pesquisa detalhada, a autora relata o robustecimento, na segunda metade do século XX, dos movimentos afro-brasileiros, sendo isso um produto do uso oficial da noção de “harmonia e assimilação racial” por um Estado ditatorial e desacreditado. Partindo das margens da sociedade, a intelectualidade negra, como destaca Alberto no livro, muniu-se de diversos instrumentos e artifícios discursivos para, em uma via de mão dupla, tanto colocar o debate da posição social do afrodescendente como uma das pautas nacionais quanto requerer políticas públicas que reparassem o passado escravagista brasileiro.

Imensamente complexa, a obra Termos de inclusão: intelectuais negros brasileiros no século XX só poderia ser elaborada por uma historiadora que se dedica ao estudo da ligação entre ideologias de raça e nação na América Latina como é Paulina L. Alberto, doutora em História pela Universidade da Pensilvânia e integrante do grupo de brasilianistas nos Estados Unidos. Tendo o apoio de inúmeros colegas docentes, brasileiros e estadunidenses, a autora confecciona o seu estudo de forma a ser o mais detalhista e minucioso possível, justificando, assim, a imposição de uma restrição temática desde a introdução do livro. Publicado originalmente em língua inglesa, Termos de inclusão foi vertido para o português pela experiente tradutora Elizabeth de Avelar Solano Martins.

A histórica omissão governamental diante da população negra, que remonta à época em que esta era escravizada, é uma das problemáticas medulares discutidas pela intelectualidade negra no Brasil da Era Moderna, tornando-se, assim, crucial para o caráter ativista dos movimentos negros contemporâneos. Com essa atualidade que circunda as discussões raciais, Paulina Alberto discorre a respeito da produção de mitos sociais – como a já referida “democracia racial” – que, sendo narrativas popularizadas, se entranham no imaginário da nação. Isso posto, o fato de os pensadores negros brasileiros seguirem, até o Estado Novo, os parâmetros sociopolíticos e morais que estavam em voga não impediu que houvesse uma revolução interna entre eles, tendo o seu auge com a publicação, em 1977, do texto “‘Democracia racial’ no Brasil: mito ou realidade?”, de Abdias do Nascimento.

É possível constatar que a comunidade negra construiu para si, desde o século passado, um sentimento de pertencimento histórico e social no “Novo Mundo”, permitindo mudanças e revisões ideológicas dentro dos próprios movimentos sociorraciais, como sublinhado no estudo da pesquisadora Paulina L. Alberto. Discorrendo, por uma perspectiva inédita, a respeito de um extenso e turbulento período temporal, dando voz a sujeitos históricos que geralmente são secundarizados, a autora de Termos de inclusão: intelectuais negros brasileiros no século XX ilustra, de forma pormenorizada, o ambiente urbano das cidades mais eminentes no panorama nacional na Modernidade, locais esses que possuem a concentração de uma intelectualidade afro-brasileira que, sob um prisma decolonial, transpõe para o centro da discussão aquilo que foi apagado ou subalternizado da narrativa oficial.

Para saber mais sobre o livro, visite o nosso site!

Termos de inclusão: intelectuais negros brasileiros no século XX

Autora: Paulina L. Alberto

ISBN: 978-85-26813-86-1

Edição: 1a

Ano: 2017

Páginas: 448

Dimensões: 16 x 23 cm

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