O operariado e as relações de poder: a socialização da democracia chilena

Por Gabriel de Lima

A interação mundial constante entre o centro e a periferia, mesmo em um contexto pós-colonial, promoveu a universalização das Revoluções Industriais ocorridas em solo europeu. Nesse sentido, para uma definição integral do cenário sociopolítico de qualquer país da América Latina, no decorrer do século XX, é indispensável remontar ao esquema e à visão política presentes no Oitocentos. No Chile, a instabilidade republicana, advinda de uma plena efervescência política durante os anos 1900, não influenciou o desenvolvimento econômico da nação, embora este estivesse apoiado tanto no domínio das oligarquias nacionais quanto em uma divisão desproporcional das riquezas.

Concebidos após uma insatisfação popular contra a lógica excludente e classista do governo chileno, os movimentos trabalhistas obtiveram uma enorme relevância social e, sobretudo, política no panorama nacional. Isso posto, foi mediante a aliança entre esses grupos operários e os partidos de esquerda que se deu uma socialização do processo eleitoral do Chile, tendo como ápice em seu decurso, a presidência de Salvador Allende. Publicada pela Editora da Unicamp, a obra O protagonismo popular: experiências de classe e movimentos sociais na construção do socialismo chileno (1964-1973), de Márcia Cury, compromete-se a reviver, por meio de um exame historiográfico e crítico, um dos acontecimentos mais marcantes desse país hispanófono. 

Em primeiro lugar, deve-se atentar aos recursos e caminhos utilizados por Márcia Cury, doutora em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em uma reconstituição mais ampla e democrática da capital chilena, Santiago: a autora perpassa momentos anteriores à eleição de Allende até a ascensão dos grupos conservadores. Assim, invertendo os ditames clássicos da pesquisa historiográfica, O protagonismo popular é desenvolvido a partir de entrevistas com atores políticos que foram, repetidamente, subalternizados ou ainda apagados da narrativa oficial: os trabalhadores chilenos. A relação de causa e efeito – ou, de acordo com o esquema textual do livro, os pressupostos e o acontecimento decorrente deles – atravessa diversos círculos públicos ou privados que interferiram na subida do partido Unidade Popular ao governo federal.

Corroborando isso, não somente demandas de ordem trabalhista, mas também aquelas relacionadas à desigualdade habitacional, às questões raciais e ao desabastecimento, estavam na pauta dos movimentos populares do operariado, demonstrando, assim, um caráter cívico e abrangente de um grupo socioeconômico que, por natureza, seria restritivo e circunscrito a determinados ambientes. Com a vitória no pleito eleitoral, Salvador Allende foi, de fato, um representante dos setores populares no sistema governamental do Chile. Não obstante, a obra de Márcia Cury aponta para a necessidade de uma certa cautela, por parte do leitor, para que os trabalhadores de Santiago não sejam vistos somente como manifestantes inconformados com a realidade nacional. No livro, aspectos culturais e identitários são valorizados com o intuito de ter-se um retrato completo dessa corporação não oficial e, subsequentemente, desse período político de esquerda.

Para alcançar uma maior veracidade histórica ou apenas uma pluralização das vivências e da narrativa sobre os acontecimentos históricos, a autora entremeia, na espinha dorsal do texto, entrevistas com populares chilenos – uma fonte de dados prolífera, profusa e pormenorizada. Arquivos oficiais ou de veículos de grande difusão também oferecem, em  O protagonismo popular, um suporte documental, como a revista francesa Les Temps Modernes, instituição jornalística do pós-guerra, e “os chamados Documentos de Trabalho, […] pesquisas desenvolvidas na Flacso [Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales] e no Cidu [Congresso Ibero-americano de Docência Universitária]”. Em decorrência de tudo o que foi posto, o leitor encontrará, em suma, uma obra multimidiática disposta em cincos capítulos, que se incumbe de respeitar a cronologia temporal e, sobretudo, histórica do movimento popular do operariado chileno.

A preocupação com a veracidade daquilo que relata criticamente faz com que a autora e cientista, partindo dos sujeitos sociais que historicamente são marginalizados no processo político de uma nação, utilize as vozes de trabalhadores chilenos para a obtenção de perspectivas alternativas sobre os ocorridos. A maestria da pesquisadora mostra-se, mormente, no método artesanal de composição do texto e de constituição de uma narrativa hipertextual, que se aproxima da realidade quanto mais distante está dos círculos oficiais, benefício este que é concedido pelo esquema metodológico adotado de uma “história vista de baixo”.

O triunfo eleitoral da Unidade Popular não pode ser entendido, em sua totalidade, examinando-se apenas o âmbito político do Chile. A participação operária e de cidadãos comuns pode ser definida como um exemplo democrático e revolucionário na América Latina. O livro, tendo essa concepção no cerne de seu núcleo temático – desde o estabelecimento do título –, volta-se a um passado mais remoto do que o governo allendiano, visto que os primórdios dos conflitos de classe no país remontam às primeiras décadas do século XX. A cultura e o ideário social da nação litorânea revelam, ao longo da obra, o enraizamento das ideias políticas, que, oriundas dos movimentos trabalhistas, se transpuseram, de forma paulatina, para outras esferas da sociedade chilena.

Enfim, apesar de ser sucedido por um governo repressor e ditatorial, comandado pelo general Augusto Pinochet (1973-1990), a ressonância do que acontecera nesse país, nos anos 1970, reverbera até a contemporaneidade, sendo imprescindível para a estruturação, na atualidade, dos grupos latinos de esquerda. Por trás da história oficial, contada por aqueles que detêm o poder na sociedade, a obra O protagonismo popular: experiências de classe e movimentos sociais na construção do socialismo chileno (1964-1973) tem a árdua função de ressuscitar sujeitos coletivos que, repetidamente, foram e ainda são silenciados e ofuscados no decorrer da democracia chilena. Destarte, a pesquisadora Márcia Cury costura passado e presente na tentativa de jogar luzes sobre um dos episódios mais esplendorosos da participação popular na política latino-americana.

Para saber mais sobre o livro, visite o nosso site!

O protagonismo popular: experiências de classe e movimentos sociais na construção do socialismo chileno (1964-1973)

Autora: Márcia Cury

ISBN: 9788526813809

Edição: 1a

Ano: 2017

Páginas: 408

Dimensões: 14 x 21 cm

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