Por Sophie Galeotti
A Segunda Guerra Mundial abalou profundamente o mundo e, em especial, a Europa. As forças do Eixo, cujos músculos eram a Alemanha, a Itália e o Japão, entraram em um violento embate contra as forças Aliadas, inicialmente formadas por Inglaterra e França e, depois, também pela potência socialista da União Soviética e pelos Estados Unidos. Logo depois do final da guerra, que derrotou os regimes fascistas do Eixo, a política de grande parte das regiões do mundo polarizou-se entre a influência desses dois países.
Evidentemente, até aqui, muitas generalizações foram feitas para resumir o contexto político em que o mundo se encontrava no pós-guerra e em suas décadas subsequentes. O fato é que há especificidades sociais, econômicas e políticas em cada país e elas influenciaram o modo pelo qual estes operaram depois do final do conflito. É com um estudo minucioso sobre a Itália, sua Primeira República e seu declínio que Giuseppe Vacca escreve A Itália em disputa – comunistas e democratas-cristãos no longo pós-guerra (1943-1978), um dos mais completos estudos historiográficos sobre o tema.
Vacca é um conceituadíssimo historiador de ideias políticas. Como ele mesmo nota na Introdução da obra, assistiu a grande parte dos acontecimentos que ora estuda, sentindo-se, assim, responsável por tratar a fundo esse período – até hoje, Vacca é engajado na política como pensador. Em janeiro deste ano, o autor completou 83 anos de idade. Além do mais, conhece a articulação política italiana de perto: nos anos 1970 e 1980, foi deputado e dirigente do antigo Partido Comunista Italiano (PCI), sobre cujos papel e limites se debruça no estudo que fez nessa obra. Hoje, também atua como figura central na prestigiada Fundação Gramsci, em Roma. A tradução da obra foi feita por Luiz Sérgio Henriques.
O historiador recorre consistentemente a fontes primárias para compor sua escrita. As referências bibliográficas somam centenas e, ao final do livro, são sete páginas de índice onomástico, que facilita a consulta a menções específicas de cada agente do período histórico tratado. E a gama é ampla: a obra aborda desde a alvorada do movimento mais articulado da resistência italiana, em 1943, até a governabilidade da Primeira República, iniciada em 1948, as articulações políticas a favor da paz, especialmente entre as décadas de 1950 e 1960, até o entardecer, no final dos anos 1970, época do compromesso storico entre a Democrazia Criastiana (ou simplesmente DC) e o PCI; o fim do compromesso e do recorte temporal do livro é muito marcado pela ocasião do assassinato de Aldo Moro – arquitetado, como se descobriu mais tarde, pela Otan –, um dos fundadores da DC.
Vacca, como era de esperar pelo seu currículo, aborda a dinâmica comunista italiana atento aos seus traços gramscianos. É a partir disso que estuda Palmiro Togliatti, figura central do PCI de 1927 até sua morte, em 1964. Ao longo desse período, a luta pelo socialismo científico esteve muito presente na Itália. Essa luta envolveu vários fatores sociais complexos e específicos do país: a religiosidade, a industrialização – sendo que o movimento socialista da Itália era majoritariamente rural, bem como a economia do país até os anos 1940 – e a necessidade da paz – afinal, as bombas atômicas ditaram essa prioridade, uma vez que o humanismo deve ser foco de qualquer ação política, ainda mais segundo o socialismo.
O maior representante da III Internacional da Itália foi o PCI; desde antes do final da Segunda Guerra, Togliatti uniu-se aos esforços da União Soviética na resistência antifascista, mas não apenas. Contudo, o antifascismo não demorou a se tornar uma frente política relativamente irrelevante. Como nota Vacca, logo após a guerra, “Stalin havia indicado como novo inimigo o imperialismo americano, enquanto o lançamento da Doutrina Truman e do Plano Marshall, na primavera de 1947, assinalou a passagem dos Estados Unidos e dos seus aliados do antifascismo para o antitotalitarismo, de que a União Soviética constituía a única encarnação ameaçadora”.
Desde o início, a articulação política na Itália – e, conclui-se, no resto do mundo – requeria algo além do velho liberalismo anterior à guerra (representado, por exemplo, pelos EUA pré-1929 ou pela República de Weimar, na Alemanha). Togliatti constatou: “Derrubado o fascismo e afirmado o movimento de libertação como grande movimento de massas, não era necessária uma grande intuição política para compreender que as velhas classes capitalistas não podiam confiar, para sua salvação, nos restos políticos do velho liberalismo”. Isso valia não só para os movimentos socialistas – que, naturalmente, se contrapunham a esse liberalismo.
O maior oponente ao PCI foi o partido DC. Este, fundado em 1943 e existente até 1994, era mais alinhado com o Ocidente da Guerra Fria, opondo-se ao marxismo-leninismo. Vacca nota que a estratégia política de Togliatti era orientada binacionalmente; dependia das diretrizes de Stalin, ao mesmo tempo que atendia às demandas nacionais italianas. De modo similar, Alcide de Gasperi, primeiro-ministro da Itália pós-guerra e cabeça do DC, alinhava-se aos Estados Unidos. Vacca, evidentemente, não resume o problema da soberania política italiana nisso: afinal, o PCI buscava a autonomia de ação. Para realmente entender como fez isso, o historiador cita as mudanças bruscas do mencionado Plano Marshall estadunidense, ao qual até a União Soviética fora favorável, em virtude da necessidade de apoio para a reconstrução europeia. Diante da Doutrina Truman, a URSS muda de posição. Vacca define essa posição como contraproducente, mas não como expansionista: a URSS buscava assegurar sua estabilidade de governo sobre as Europas Oriental e Central, não expandir para a Europa Ocidental. O alinhamento do PCI com essa postura foi o que, para Vacca, “constituiu a prova mais relevante da sua impossibilidade de declinar o interesse nacional em termos competitivos com a DC degasperiana”. Todavia, apesar de a governabilidade centrar-se historicamente no DC, a articulação entre o PCI e o DC nunca foi simples ou colocou o PCI em uma posição de insignificância. Para enquadrar o problema, Vacca recorre ao historiador Franco De Felice e o seu conceito de “dupla lealdade”. Dessa maneira, retornamos à dinâmica internacional do DC-EUA e PCI-URSS. Todavia, Vacca reitera:
Isso não quer dizer que a “dupla lealdade” da DC e a do PCI fossem equivalentes: a primeira baseava-se na inserção da Itália num campo de forças que, mesmo subordinadas à potência americana, cooperavam para a construção de uma supranacionalidade econômica e política, que deixava ampla margem às elites nacionais para negociar os interesses do país; a segunda fazia referência a um sistema hegemônico transnacional baseado na imposição do interesse estatal soviético de forma opressiva. Naturalmente, para o PCI, que operava na esfera de influência americana, o vínculo internacional derivado da fidelidade à URSS não era tão impositivo quanto para os partidos comunistas das democracias populares e poderia oferecer ampla margem de manobra.
O historiador nota que Togliatti adotava diferentes posições de acordo com a articulação das posições de Stalin dentro da Itália; às vezes elas ofereciam boa margem ao interesse nacional da Itália, como no caso do governo de Badoglio; às vezes, como no caso do Plano Marshall, não. Ele ainda observa outras influências de Stalin sobre demais partidos e/ou governos comunistas, como a geral propensão à desradicalização. Além disso, o autor percebe que o PCI entra em uma certa conjuntura reformista de governo, com o nascimento de uma estratégia em defesa dos direitos fundamentais da classe trabalhadora italiana, mas capaz de olhar para o governo e o Estado, tendo em mente objetivos concretos: mirar nas mudanças de ação da sociedade, tanto partindo de baixo (da massa) quanto do alto (o governo).
Mais adiante, vemos a ação ser direcionada ao objetivo da paz mundial. Diante do risco de uma “catástrofe total” que arrasaria toda a “civilização humana”, Togliatti expunha a necessidade de explorar a possibilidade de dar vida a “um alinhamento de forças muito diferentes umas das outras por sua natureza, por seu caráter social e político, que seria, de fato, um movimento pela conservação da civilização humana, pela conservação da própria humanidade”. A urgência pela paz – novamente, ditada pela nova dinâmica da bomba atômica – fez com que, ao longo do tempo, a religião fosse admitida pelo PCI; não como ditadora de regras, mas como característica cultural de parcela dos membros ativos do partido, que, essencialmente, deveriam apoiar o marxismo-leninismo, não importando o seu credo religioso. O fator religioso foi, então, sendo cada vez mais reconhecido dentro do movimento socialista italiano. No X Congresso, em dezembro de 1962, o PCI reconheceu a irredutibilidade, a autonomia e a positividade do fato religioso.
Durante todo o período tratado na obra, Giuseppe Vacca não deixa de olhar atentamente para todas as articulações internacionais e para a maneira como elas influenciavam a estrutura política italiana. Muitos outros sujeitos são trazidos à cena: Emilio Sereni, Pietro Scopolla, Richard Nixon, Nicola Matteucci, Aldo Moro – cujo assassinato havia sido supostamente cometido pelas Brigadas Vermelhas, quando, na verdade, tratou-se de um plano da Otan para manchar a reputação comunista – e muitos outros. Até a alvorada do período tratado no livro, 1979, existiram uma nova URSS e uma nova dinâmica de mercado mundial. Portanto, a obra pode ser focada em um país, porém a historiografia que sintetiza e as frentes que aborda são múltiplas.
Como anotou Togliatti, no I Congresso de Estudos Gramscianos: “Fazer política significa agir para transformar o mundo. Na política, pois, está contida toda a filosofia real de cada um, na política está a substância da história e, para o indivíduo que alcançou a consciência crítica da realidade e da tarefa que lhe cabe na luta para transformá-la, está também a substância da sua vida moral”. É partindo desse tipo de riqueza conceitual que Vacca consegue olhar para cada acontecimento histórico de maneira a mobilizar todo um mundo historiográfico. Este texto reconhece sua própria limitação diante da amplitude do trabalho de Vacca, um historiador que faz exemplo em seu ofício, abordando uma longa linha temporal da Itália sem perder o fio da meada tanto de sua geopolítica quanto de suas características socioeconômicas particulares.
A obra A Itália em disputa – comunistas e democratas-cristãos no longo pós-guerra (1943-1978) é essencial a todos os historiadores especializados na Primeira República Italiana, na Guerra Fria, em relações internacionais, ou a qualquer um que deseje ter um contato mais aprofundado com o trabalho historiográfico.

A Itália em disputa – comunistas e democratas-cristãos no longo pós-guerra (1943-1978)
Autor: Giuseppe Vacca
Ano: 2021
Edição: 1a
ISBN: 978-65-862-5394-8
Páginas: 304
Dimensões: 23 x 16 x 1,5 cm