Por Sophie Galeotti
Mercúrio: Infeliz! Serão teus deuses, então,
Os Infinitos?
Prometeu: Deuses?
Não sou nenhum Deus
E não me imagino nem como um, nem como outro.
Infinitos? Todo-Poderosos?
O que podem eles?
Poderá o largo campo
Do Céu e da Terra
Concentrar em meu punho?
Conseguirão eles separar-me
De mim mesmo?
Poderão eles esticar-me
Para caber num mundo?
Fragmento de Prometeu, Johann Goethe
Tudo se iniciou com uma polêmica nascida de uma declaração de admiração por esse poema de Goethe. Quem a escreveu foi Gotthold Lessing, um pouco antes de morrer. O destinatário era Friedrich Heinrich Jacobi. O motivo da admiração era para além da beleza dos versos. Escreveu Lessing: “Os conceitos ortodoxos da divindade já não são para mim; não consigo apreciá-los. Ἓν καὶ Πᾶν [Allinheit, hen kai pan ou ‘o um e o todo’]! Não conheço nada além disso. Esse poema também vai nessa direção; e devo admitir que me agrada muito”. Por que e como surgiu uma polêmica a partir dessas frases? Quem estava envolvido e como se envolveu? E quais foram as repercussões dessa discussão para a filosofia?
A principal razão da polêmica era a de a concepção hen kai pan apontar para a filosofia espinosista. A agitação envolveu diversas menções ao finado poeta no debate entre seu correspondente final, Jacobi, e seu amigo de longuíssima data – mais exatamente, de três décadas –, Moses Mendelssohn.
Os detalhes da interessante história dos textos que seguiram essa confissão e da polêmica suscitada por eles vêm ao público no livro Sobre a doutrina de Espinosa em cartas ao senhor Moses Mendelssohn, de Friedrich Heinrich Jacobi, traduzido na íntegra para o português pela primeira vez. Juliana Ferraci Martone é a responsável pela tradução das cartas e de seus apêndices das reedições, além de ter escrito uma extensa Introdução, que contextualiza o embate filosófico da época e disserta sobre as suas repercussões para a filosofia e a sua história. Martone é doutoranda em Filosofia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
O livro porta em si diversos gêneros textuais, além de trazer registros históricos por meio das correspondências: “[ele] resulta da combinação de cartas a diversos participantes do debate sobre o espinosismo, respostas diretas às objeções feitas ao autor (apêndices), diálogos fictícios e reais”. Apesar da densidade argumentativa, a obra pode ser lida de maneira dinâmica, ainda mais quando auxiliada pelo aporte extratextual cuidadosamente escrito por Martone.
Continuemos, então, a discutir as questões colocadas no início deste texto. A maior delas permanece: por que o espinosismo foi o centro de tanta polêmica? Afinal, hoje, quando pensamos em Espinosa, imaginamos um filósofo de grande prestígio. Todavia, não foi sempre assim. Na verdade, à ocasião da primeira publicação das cartas entre Jacobi e Mendelssohn, Espinosa era um “cachorro morto”, como nota Martone. Até o final do século XVIII, houve um grande silêncio em relação à doutrina do filósofo, pois era considerada herética e/ou ateísta. Isso se deu desde a má recepção dos contemporâneos do autor, principalmente Pierre Bayle e Gottfried Leibniz, segundo Martone, em seu artigo “As filosofias do hen kai pan: Giordano Bruno e Espinosa na leitura de F. H. Jacobi”.
Entretanto, a má reputação de Espinosa não impediu que Jacobi estudasse a doutrina do autor como um verdadeiro historiador da filosofia – modus operandi raríssimo à época. Jacobi fez isso de maneira a incluir as suas próprias críticas e interpretações na filosofia espinosana. Para isso, também trouxe Giordano Bruno à cena, que considera ser inseparável de Espinosa, para traçar a filosofia do hen kai pan.
Martone nota que a extrema originalidade de Espinosa ao reelaborar temas clássicos da filosofia foi particularmente interessante a Jacobi e aos que vieram depois dele. Essa originalidade, por sua vez, estava na maneira de “articular noções fundamentais da tradição filosófico-teológica, como Deus, mundo, homem, causalidade, tempo”. Martone recorre a Filippo Mignini, filósofo autor de diversos livros sobre Espinosa, para reforçar que tanto Bruno quanto Espinosa vêm de uma tradição não antropocêntrica, “destoante da maioria das religiões cristãs e consideravelmente minoritária na cultura ocidental, de uma tradição que ilustra o ponto de confronto e confluência entre filosofia ocidental e oriental”. Enfim, “no sistema espinosano, Deus não será contemplado sob a perspectiva moral ou teológico-dogmática, mas sob o ponto de vista da ideia perfeita e suficiente do único ser, ou substância, que é em e por si mesmo (cuja essência envolve existência)”. Daí, a brecha para a heresia.
Mendelssohn, iluminista alemão de tradição wolffiana, tratava o espinosismo com certa depreciação. Christian Wolff, como consta na Introdução de Sobre a doutrina de Espinosa, “afirma que o espinosismo não difere muito do ateísmo e suprime a possibilidade da religião, já que nega o verdadeiro Deus, isto é, o Deus que age livremente, possui suma sabedoria e governa este universo”. Ou seja, o Deus inerentemente bom e onipotente. Não é de surpreender que Mendelssohn, seguidor da tradição wolffiana, ficou chocado ao descobrir que o amigo recém-falecido aderiu a uma filosofia herética. Então, escreveu para Jacobi, que lhe respondeu detalhadamente. Mendelssohn prometeu tratar da filiação de Lessing ao espinosismo, porém, antes, precisaria estudar melhor a doutrina. Depois da troca, surge um silêncio entre os dois.
A intermitência da comunicação não foi mero acaso: “Jacobi descobre por meio de terceiros que Mendelssohn mudara de ideia e pretendia publicar um novo texto sem lhe dar direito de resposta, mas se valendo dos manuscritos trocados entre eles, um uso que Jacobi já havia autorizado. Mendelssohn lhe escreve, desta vez diretamente, que fixaria o status controversiae em um novo escrito”. Sabendo disso, Jacobi agiliza a publicação das correspondências trocadas até aquele momento entre os dois. Em 30 de setembro de 1785, encaminha o exemplar impresso de Cartas a Mendelssohn. A reação geral à atitude de Jacobi foi extremamente negativa: ele é condenado por tornar públicos documentos pessoais, sem prévio aviso ao seu adversário. Agravando a controvérsia, Mendelssohn falece um ano depois.
A Jacobi é atribuída a culpa da aflição que levou o iluminista à morte precoce. Mendelssohn é até visto como uma “vítima da amizade”, por ter tentado defender Lessing da associação ao espinosismo. Mendelssohn defendeu, em seu último escrito, Horas matinais, um espinosismo purificado, “uma espécie de doutrina panteísta em conformidade com a religião positiva, a fim de atenuar as acusações que recairiam sobre Lessing, caso a conversa com ele e Jacobi fosse tornada pública”. O que, de fato, ocorreu. Até mesmo Immanuel Kant escreveu sobre a polêmica, tomando o lado do iluminista wolffiano, embora houvesse uma pressão de seu editor para a publicação do texto O que significa orientar-se no pensamento?.
Jacobi passou pelo status de persona non grata; todavia, ainda reeditou a sua publicação duas vezes, adicionou apêndices e reviu ainda mais as elaborações sobre Espinosa. O fato é que, depois de Cartas, especialmente a partir do início do século XIX, o espinosismo voltou à cena de destaque no pensamento filosófico. Friedrich Hegel, um dos maiores filósofos de todos os tempos, reconheceu Espinosa como essencial ao repertório de qualquer um que queira ser designado como filósofo, de acordo com o livro Hegel’s History of Philosophy: New Interpretations, organizado pela sociedade norte-americana que leva o nome do filósofo. Espinosa foi de “cachorro morto” a fundamental figura filosófica; e isso aconteceu graças a Jacobi.
Sobre a doutrina de Espinosa em cartas ao senhor Moses Mendelssohn é essencial aos filósofos e aos historiadores da filosofia que buscam entender uma virada crucial no pensamento moderno. É imperdível aos estudiosos da vida e obra de Jacobi, porque o leitor irá conhecer “os temas centrais de sua reflexão filosófica que o acompanham e oferecem um retrato fiel do escritor, do filósofo e do homem”, nas palavras da tradutora do autor e especialista nele.

Sobre a doutrina de Espinosa em cartas ao senhor Moses Mendelssohn
Autor: Friedrich Heinrich Jacobi
Tradução: Juliana Ferraci Martone
Edição: 1a
Ano: 2021
ISBN: 9786586253900
Páginas: 256
Formato: 23 x 16 x 2 cm