Por Sophie Galeotti
Pensador italiano de ascendência judaica, sobrevivente do Campo Auschwitz III, químico, escritor e profundamente humanista. Esses são alguns adjetivos que ajudam a definir Primo Levi, mas que não alcançam, isolados, suas amplitudes criativa e intelectual. Com o olhar extremamente atento à multiplicidade de facetas de Levi, o livro Caleidoscópio Primo Levi – ensaios sobre um poliédrico quimiscritor reúne, em uma coletânea, textos essenciais para entender melhor, simultaneamente, o autor e a pessoa.
A obra é organizada por Aislan Macieira, professor colaborador da Universidade de São Paulo (USP), e por Luciana Massi, professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp). A contribuição do livro à fortuna crítica brasileira sobre Levi é imensa: traz um detalhado estudo biográfico e investiga múltiplos aspectos de sua escrita – por exemplo, os traços científicos por trás dela, as inspirações em Dante Alighieri nos relatos testemunhais ou os possíveis diálogos da prosa com a atual ascensão populista pelo mundo. Por fim, o livro também traz um estudo sobre a recepção de Primo Levi no Brasil, relativamente nova em relação a outros países.
Levi nasceu em 1919, na cidade de Turim, Itália, onde cresceu e estudou até o ensino superior. Foi criança durante a ascensão e a consolidação do fascismo italiano. Estudou no Liceu Massimo D’Azeglio no início dos anos 1930 e, como seu biógrafo Ian Thomson nota, fez parte da última geração italiana a ser educada com base nos textos clássicos, especialmente na Divina Comédia, com ênfase nos cânticos do “Inferno”. Ironicamente, como escreve o autor do capítulo “Vita Infera: Dante, Primo Levi”, Renato Lessa, a celebração dos autores clássicos foi especialmente reforçada durante o regime fascista. Sob a Lei Gentile, os eixos educativos distinguiam-se entre a cultura humanística – a “formativa” – e a cultura científica – a “informativa”. Lessa observa que o fascismo rejeitou a cultura positivista de valorização da cultura científica. Segundo a definição do autor da Lei, Giovani Gentile, o modo geral de conceber a vida do fascismo seria “espiritualista”, e somente na “experiência espiritual” o homem poderia realizar-se. A escatologia e o esoterismo foram o pano de fundo para a cultura nazifascista; o filósofo italiano Julius Evola – até hoje influente na direita contemporânea – é representativo do papel central de ambos para a concepção de realização do ser do homem fascista, como o livro Guerra pela eternidade, lançado pela Editora da Unicamp, destrincha.
Toda essa contextualização histórica conclui-se no fato de que Levi teve a experiência de ler Dante na escola; e, mais tarde, “soube ler” Dante, assimilando sua poesia para tecer uma visão de mundo e significado, mesmo diante daquele abismo infernal: o campo de concentração. Antes de se tornar um sobrevivente do Shoah – palavra hebraica que significa “Holocausto” –, Levi formou-se químico pela Universidade de Turim com honras, por seu desempenho brilhante. Não foi fácil arrumar emprego tendo ascendência judaica. Apesar das dificuldades, engajou-se na luta contra o fascismo.
Quando foi preso aos 24 anos, em 1943, atuava como partigiano, membro do grupo de resistência antifascista italiana. Ironicamente, foi a ascendência judaica que o salvou da morte: a punição para judeus era o campo de concentração; para os partigiani, o fuzilamento. Podendo escolher, Levi foi enviado para Buna-Monowitz ou Auschwitz III. Foi a partir de sua experiência lá que escreveu aquela que hoje é considerada uma das maiores obras testemunhais do Holocausto: É isto um homem?. Sua escrita em fragmentos reforça a ideia central do choque do Shoah: o mundo das narrativas com as quais estamos acostumados e dos credos que tomamos por certos perde o sentido e a veracidade. Os círculos do Inferno sobem à Terra.
Levi viajou ao fundo de Auschwitz, lá permaneceu por quase um ano, vivendo um sofrimento real, ao mesmo tempo que intangível e incompreensível. Como nota Macieira, “Levi imerge-se na própria alma, mas também na de seus semelhantes, vítimas ou algozes que sejam”. Mais tarde, em Os sobreviventes e os afogados, faz o conceito de “zona cinzenta” ser central em sua narrativa; reconhece os algozes oprimidos, como os judeus vigilantes nos campos, Kapo, e os que poderiam ser algozes mas não foram, como os civis alemães que ajudaram judeus a fugir ou a se esconder durante o Holocausto.
Quando É isto um homem? foi publicado pela Einaudi, maior editora de Turim, em 1958, Levi foi se tornando cada vez mais conhecido por sua escrita testemunhal. No meio-tempo, havia iniciado o que viria a ser uma longa carreira como químico – em 1948, conseguiu emprego na empresa Siva, onde trabalhou por mais de três décadas. Interessava a Levi, especialmente, escrever sobre química. A partir disso, foi nascendo o que se tornou outro best-seller seu e que fez com que ele mesmo se visse como um escritor.
A tabela periódica é uma coletânea de 21 contos, cada um intitulado com um elemento químico. A revista Scientific American constatou, em 1985, a grandeza da escrita de Levi, que transformou sua profissão em poesia, colocando-o ao lado de outros grandes autores da escrita “científico-literária”, como Isaac Asimov ou H. G. Wells. Luciana Massi, no capítulo de sua autoria “Entre o autor e a obra: uma análise disposicional da relação entre literatura e ciência em Primo Levi”, nota que Umberto Eco teorizou que não devemos estender a interpretação de uma obra literária ao seu autor, devido ao risco de cairmos na armadilha da “superinterpretação”; todavia, é impossível não pensar em Levi ao ler sua obra. Ele uniu a sua profissão à sua vocação literária, resultando num “quimiscritor”, termo cunhado por Carlos Sérgio Leonardo Júnior. Para a organizadora de Caleidoscópio, ninguém escreveu tão intimamente para os químicos quanto Levi.
Segundo Aislan Macieira, Levi exerceu sua profissão em um sentido realmente antifascista; não cindiu, como recomendado pela Lei Gentile, as áreas formativas e informativas; quando escreveu, foi tanto químico quanto sobrevivente, além de investigador da sua própria alma e das que o rodearam.
Levi viu ascenderem os negacionistas do Holocausto – divididos entre as correntes do francês Robert Faurisson, que negava o acontecido, e Ernest Nolte, alemão que encabeçava uma corrente que não o negava, mas defendia que a Alemanha não fora a única nação na história a fundar campos de extermínio em massa. Sob esse peso do negacionismo – problema ainda tão presente –, Levi ainda foi acusado, em um artigo de 1985 da revista conservadora, judaica e estadunidense Commentary, de ter sido antifascista no momento mais conveniente possível, uma vez que a vitória aliada na Segunda Guerra Mundial já estava assegurada nessa ocasião. Ele sofreu esse ataque, e outros, principalmente por ser um judeu liberal, assimilado culturalmente e altamente crítico ao Estado de Israel e suas políticas étnico-territoriais.
Mas o quimiscritor não deixou de se engajar nas sombras que permaneciam pairando sobre o mundo. Publicou um artigo de resposta e escreveu dezenas de ensaios sobre política e os campos de concentração. Também colocou em palavras um sentimento muito comum entre os sobreviventes: a culpa, tratada em Os sobreviventes e os afogados. Sobreviver significa que um outro irmão, mais justo e digno do que você, caiu em seu lugar? Esse tormento foi comum entre sobreviventes do Holocausto, e continua sendo entre sobreviventes de atos violentos em massa. Levi agiu contra o negacionismo, usando o materialismo histórico como uma arma carregada por sua complexa experiência de vida.
A culpa, aliada aos problemas de saúde de sua mãe e à gravidade da situação política nos anos 1970 e 1980 – a mencionada ascensão negacionista, as guerras sionistas em Israel, entre outros –, contribuiu para episódios de séria depressão de Levi. Ele tratou-se. Mas, no dia 11 de abril de 1987, sua mulher, Lucia, voltava para o apartamento deles quando viu uma movimentação estranha no hall de entrada. “Não! Ele fez o que sempre disse que faria!”, disse, ao saber do suicídio do marido.
Toda a Itália sofreu com a morte de um de seus maiores intelectuais desde Pier Paolo Pasolini. O autor ainda era pouco conhecido no Brasil, mas viria a sê-lo mais tarde, como o capítulo “Recepção e fortuna crítica: Primo Levi no Brasil”, de Macieira, explora.
O fato é que, hoje, as sombras que atormentaram Primo Levi não foram iluminadas. Nas palavras de João Carlos Soares Zuin, autor do capítulo “Analogias entre o pesadelo de Primo Levi e o populismo contemporâneo na Itália”, “em pleno século XXI, deparamo-nos com o reaparecimento de novas formas de dominação política, baseada na violência, na construção de espaços de concentração, segregação e extermínio do inimigo”. Assim sendo, Macieira e Massi enfatizam a urgência da rememoração da vida e da obra do autor:
A observação criteriosa, a clareza e a objetividade de Primo Levi são ferramentas, e fontes indispensáveis, de diálogo e reflexão em um tempo no qual a memória é atacada, e a história reelaborada, em favor de muitas pós-verdades que interessam ao discurso e ao pensamento hegemônico. Sua obra é um imperativo para se pensar e refletir sobre as crescentes ameaças autoritárias através de revisionismos e negacionismos históricos e científicos.
Caleidoscópio Primo Levi – ensaios sobre um poliédrico quimiscritor é um guia em meio à imensidão que ele foi, como escritor e pessoa. Ele ainda tem muito a nos ensinar. Essa obra nos ajuda a aprender.

Organizadores: Aislan Camargo Macieira e Luciana Massi
Edição: 1a
Ano: 2021
ISBN: 9786586253887
Páginas: 232
Dimensões: 21 x 14 x 1,3 cm.