Por Everaldo Rodrigues da Silva Junior
A história da cidade de Salvador confunde-se muitas vezes com a história do Brasil. Fundada em 1549 por Tomé de Souza, primeiro governador-geral da colônia, a cidade recebeu, ao longo de três séculos, um grande número de africanos escravizados, o que marcou sua paisagem e seu cotidiano. Na “Cidade da Bahia”, cultura, religiosidade e tradições foram constituídas e refeitas a partir da convivência entre africanos, portugueses e brasileiros, dentro dos limites definidos pelas relações escravistas. Com a Abolição, em 1888, essas relações estabeleceram características marcantes de uma sociedade em constante conflito com seu passado escravagista. Em De que lado você samba? Raça, política e ciência na Bahia do pós-Abolição você vai entender como a vivência negra, para além do que era exibido como característico de Salvador e do que foi construído pelo racismo, foi capaz de formar uma imagem muito mais plural e legítima dessa cidade.
A obra faz parte da coleção Históri@ Illustrada, que apresenta, na forma de e-books, pesquisas realizadas nas áreas de história social e da cultura com base em diversos documentos, como textos, fotos e gravações em áudio. Gabriela dos Reis Sampaio e Wlamyra Ribeiro de Albuquerque, autoras do livro, são doutoras em história social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professoras do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia (FFCH-UFBA). De que lado você samba? aborda as dinâmicas do racismo na cidade de Salvador nas primeiras décadas depois da Abolição. Ao percorrerem diferentes territórios físicos e culturais da capital baiana, as autoras focam a população e aspectos de sua vida cotidiana, como as festas, as religiosidades e as sociabilidades urbanas.
No período abarcado pelo livro, entre 1888 e 1905, trabalhadores braçais, médicos, cientistas, lideranças religiosas e jornalistas, fossem negros ou brancos, elaboravam e disputavam suas crenças, seus projetos e suas expectativas para um país que atravessava a crise da Monarquia e a instituição da República, que manteve as exclusões baseadas em critérios sociorraciais. Salvador, em especial, oferece a possibilidade de analisar um recorte histórico e geográfico muito representativo das dinâmicas sociais, políticas e raciais do Brasil daquele período: segundo o censo de 1872, a população da cidade era de 108.138 indivíduos, sendo que 88,4% foram classificados como livres e 11,6%, como escravos. Desse percentual de escravizados, 36,7% declararam-se africanos. Os dados ficam mais complexos, no entanto, quando a identificação racial é exposta: com 30,9% considerados brancos, 43% mulatos, 23,5% negros e 2,2% caboclos, uma minoria branca seguia compondo-se de proprietários de terras e de escravos, de funcionários públicos e de doutores, expondo uma grande desigualdade social.
Acima de tudo, Salvador carregava uma carga cultural que exemplifica as contradições e hipocrisias da sociedade escravocrata, uma espécie de situação fronteiriça, cujas representações “ora adocicavam a labuta dos escravizados e exaltavam o exotismo das culturas africanas, ora animalizavam a população negra”, segundo as autoras. Esse “deslocamento calculado entre a encarnação do idílico e da barbárie foi empenho das elites para manter a sua posição de poder, quando a condição senhorial estava na berlinda”. Ou seja, havia um esforço, por parte de uma elite que não desejava perder seus privilégios, de atribuir sentidos raciais a ações, projetos e posições políticas de grupos sociais, caracterizando-os como fixos e tradicionais e construindo uma imagem da capital da Bahia como um lugar de difícil modificação social, refratário a transformações, uma cidade que seria “refém da configuração geográfica que a definia no mapa nacional e da estrutura colonial que, a partir dela, fundou o Brasil”.
Essa construção pode ser confirmada e analisada a partir dos diversos cartões-postais, caricaturas de jornais e fotografias apresentados no livro: imagens que buscavam reforçar estereótipos, como os da “mulata sensual”, da “preta quituteira” ou do “capoeirista ágil”, construções que representavam “as marcas da tradição, do atraso, do passadismo e da persistência de relações antiquadas que, em geral, justificam não só as desigualdades raciais, mas também os desequilíbrios regionais”, como escrevem as autoras. Por outro lado, o livro também busca mostrar como a presença negra não estava restrita apenas a esses “lugares sociorraciais subalternos e estereotipados”. Negros e negras também ocupavam espaços políticos, culturais e territoriais, agindo contra essa estereotipagem durante a crise do escravismo e no período pós-Abolição. Eram carregadores, vendedoras de rua, capoeiristas, jornalistas, carnavalescos, médicos e artífices negros que contrariavam os retratos emoldurados pela cidade.
Essa duplicidade fazia de Salvador uma zona instável, o que suscitou importantes questões para as autoras:
Onde acabava a paisagem da baía pitoresca e começava a cidade pujante dos grandes comerciantes, mas também das ganhadeiras? A partir de que ponto o passado escravista foi deixado para trás, e o que desse passado foi preservado e contestado? Quais as linhas divisórias entre os planos republicanos dos estudantes de medicina e aqueles dos artesãos negros e letrados? Como intelectuais negros buscaram se distinguir naquele mundo racializado? Quais os princípios hierárquicos do velho mundo imperial a serem preservados na ordem republicana? Quais os limites entre as sociabilidades próprias ao escravismo e aquelas projetadas para o pós-Abolição?
Essas questões são analisadas ao longo de seis capítulos e um epílogo, que percorrem desde a expansão da causa abolicionista na cidade, dando foco aos protagonistas do movimento, até os efeitos, na capital baiana, da mais emblemática crise da Primeira República, a Guerra de Canudos. Também são analisados os impactos da Abolição, a importância da zona portuária na disputa entre monarquistas e republicanos, as discussões e expectativas em torno da República e do pós-Abolição, a importância dos líderes negros do movimento operário baiano, como Manuel Querino, Domingos Silva e Ismael Ribeiro, assim como as disputas raciais inerentes a festas como o carnaval e a utilização de preceitos “científicos” para abordar questões raciais e religiosas, preceitos estes contaminados pelo racismo e que foram rejeitados por nomes como Juliano Moreira, médico negro que viria a se tornar um dos mais importantes psiquiatras do Brasil.
De que lado você samba? oferece uma análise dos confrontos políticos daqueles anos, marcados pelas mudanças na estrutura de poder e pela ênfase na ciência como forma de legitimar a exclusão racial e social. Ao unir textos, imagens e sons na análise historiográfica, o livro permite uma interação bibliográfica que enriquece a experiência de leitura. Uma obra indicada a estudantes e pesquisadores da história do Brasil e a todos os interessados nos confrontos políticos que refletem as incoerências de uma sociedade profundamente marcada pela escravidão.
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Autor: Gabriela dos Reis Sampaio e Wlamyra Ribeiro de Albuquerque
ISBN: 9786586253801
Edição: 1
Ano: 2021
Formato: E-book