A carta de Caminha é obrigatória para entender o Brasil e para o Vestibular Unicamp

Por Sophie Galeotti

As expedições europeias para as Américas fundaram a ideia de “Novo Mundo”. Essa ideia constitui-se de um imaginário formado por diversas crônicas, relatos de viagem e cartas escritas por membros das tripulações quinhentistas, como, por exemplo, a carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal, Manuel. Reconhecido como um dos textos mais proeminentes do gênero, seja pelas copiosas descrições dos aspectos ambientais e humanos do achamento ou pela influência cultural que exerceu séculos depois, esse escrito, fundamental para o entendimento da história do Brasil, agora, torna-se uma das obras literárias do Vestibular Unicamp 2022 e ganha edição modernizada por meio do livro Carta de achamento do Brasil.

O lançamento tem Introdução de Sheila Hue, escritora, pesquisadora e professora adjunta no Instituto de Letras da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (ILE-Uerj). Hue já publicou edições comentadas de escritos do século XVI, como A primeira história do Brasil, do historiador e cronista Pero Magalhães de Gândavo, e a edição 20 sonetos, de Luís de Camões, pela Editora da Unicamp. A obra ainda conta com 244 notas de rodapé, que situam o texto histórica e culturalmente, além de explicarem as substituições feitas na edição, os significados de termos usados à época da carta e os recursos narrativos adotados por Caminha. 

Ao contrário do que comumente se pensa, Portugal já tinha conhecimento da existência da América do Sul quando a expedição de Cabral foi empreendida. O desembarque nas terras brasileiras podia não ser o destino da expedição – que era Calicute, na Índia –, mas teve papel fundamental na apreensão de informações pela Coroa portuguesa sobre essa ainda misteriosa costa atlântica. Para tal apreensão, a carta era instrumento fundamental. Em meio às rotas marítimas, “circulavam pessoas, mercadorias, artefatos, objetos, livros e conhecimento”. Nesse intenso fluxo, as cartas eram uma das formas de “comunicação rápida, expressa […], que viajava[m] nas naus a caminho de seus destinatários, servindo como instrumento[s] de governação e de comunicação”, nas palavras de Sheila Hue. A carta de Caminha ficou restrita à Coroa por mais de dois séculos, pois, em meio a disputas expansionistas na Europa, Portugal buscava manter as características do território sob o sigilo de sua própria governação.

Pero Vaz de Caminha era um funcionário régio e homem de letras bem conhecido por sua habilidade de escrita. Ele anotou, detalhadamente, as suas impressões sobre a Terra de Santa Cruz e seus habitantes, ao menos aquelas que julgava serem pertinentes transmitir ao rei de Portugal, Manuel. No registro, Caminha escreveu eloquentemente sobre a fertilidade da terra: “As águas são muitas, infinitas. Esta terra é de tal maneira graciosa que, querendo-a explorar, dar-se-á nela tudo em virtude das águas que tem”. As mais copiosas descrições presentes na carta são, todavia, as dos habitantes. Mesmo que Portugal já tivesse tido contato com outros povos, o encontro com os indígenas foi uma experiência que ultrapassou “tudo que já tinham experimentado nas costas africanas”, como escreve Hue. Há uma tensão cultural latente entre os povos, por exemplo, na troca de presentes, que era interpretada de maneiras diferentes pelos portugueses e pelos indígenas. Os primeiros viam-na por uma ótica de capitalismo mercantilista, interpretando os objetos pelo valor pecuniário. Já os indígenas viam os presentes como símbolos de amizade ou de futuras alianças, uma vez que, provavelmente, compreendiam os portugueses como xamãs ou seres de dimensões espirituais. Assim, os indígenas são tidos como ingênuos pelos portugueses ao trocar as valiosas penas de aves silvestres e flechas por objetos que, pela ótica mercantilista, não têm valor, como carapuças de linho.

Por definição, a colonização lança o olhar ao valor econômico que pode ser gerado por um território, em tensão com o olhar dos habitantes originários, que o veem como meio de vida. Caminha chega a interpretar os gestos de um indígena como a sinalização da presença de ouro na terra, mas, humildemente, reconhece que talvez só tenha entendido isso porque era a vontade geral da expedição. Portugal não viria a encontrar quantias significativas de ouro no Brasil, até o século XVII, o que não impediu que sua colônia lhe gerasse grandes lucros no meio-tempo, principalmente pela exploração de pau-brasil e pelo cultivo extensivo de cana-de-açúcar. No processo colonial, os indígenas não só foram privados de suas terras, como também dizimados. A carta quinhentista apresenta mais uma tensão cujos trágicos desdobramentos permanecem a assombrar os povos indígenas. Hoje, as populações amazônicas têm suas vidas ameaçadas pelo desmatamento e pelo garimpo, como o ativista e escritor Davi Kopenawa, mencionado na Introdução da obra, enfatiza. A autonomia indígena sobre seus territórios segue institucionalmente ameaçada, como as PL 191/2020 e 490/2007 escancaram. Recentemente, esta última, dos “marcos temporais”, avançou na Câmara dos Deputados. 

O cronista descreve os indígenas como puros espiritualmente e defende que “o melhor fruto que nela (na terra) se pode fazer, me parece que será salvar esta gente, e esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza nela deve lançar”. A imagem de conciliação e união entre os índios e os portugueses é uma da qual os românticos se apropriaram. Durante o século XIX, o Brasil buscaria, com todos os seus esforços culturais, por uma identidade nacional que desse unidade e unicidade ao povo brasileiro. Assim, a literatura romântica abraçou a carta, “revestindo-a de seus sentidos programáticos”, como nota Hue, para mostrar os índios e os portugueses juntos – e cristãos –, como o elemento fundamental à identidade brasileira, tal qual José de Alencar fez em Iracema, romance publicado em 1865. Já os modernistas subvertem essa visão, como Mário de Andrade fez em Macunaíma, publicado em 1928 e que referencia Iracema irônica e diretamente. Nas palavras de Hue: “A carta de Pero Vaz de Caminha, assim, seria convocada sempre que fosse necessário pensar o Brasil e a identidade nacional, ou pôr em xeque a mitologia do país, e, mais de 500 anos depois, continua a ser um espaço simbólico constantemente visitado e tensionado”.

Carta de achamento do Brasil traz ao leitor um registro que é marco da história brasileira, sustentado por um rico aparato teórico. O texto está em pleno diálogo com tensões políticas atuais, além de ter influenciado profundamente a cultura do Brasil e, portanto, os brasileiros. Assim sendo, o lançamento é imperdível não só aos vestibulandos que pretendem estudar na Unicamp, como a todos que desejam entender melhor o nosso país.

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Carta de achamento do Brasil

Organizador: Sheila Hue

ISBN: 9786586253825

Edição: 1

Ano: 2021

Páginas: 136 p.

Dimensões: 18,00 x 10,50 x 0,80 cm.

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