A história dos manuais de desenho no Brasil entre os séculos XVI e XX

Por Everaldo Rodrigues

Convivemos com disciplinas escolares durante vários anos das nossas vidas, mas muitas vezes ignoramos grande parte de suas histórias. Você já parou para pensar, por exemplo, sobre como surgiu a disciplina de Educação Artística? Você sabia que, entre os séculos XVII e XX, o desenho artístico era considerado um talento valioso para as elites? E que, com o passar dos anos, também foi incentivado para as camadas mais pobres da sociedade devido ao seu caráter formativo, que poderia levar ao aperfeiçoamento dos trabalhos e práticas manuais? Para o ensino do desenho, muitos instrumentos e manuais didáticos foram produzidos e difundidos, circulando por meio do comércio transatlântico de impressos. A história dessas publicações é explorada no livro de Renato Palumbo Dória, Entre o belo e o útil: manuais e práticas do ensino do desenho no Brasil.

Renato Palumbo Dória é mestre em história da arte e da cultura pela Unicamp e doutor em arquitetura e urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP). Além disso, é professor de história e teoria da arte no Instituto de Artes da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Com esse livro, que conta com prefácio de Jorge Coli e apresentação de Carlota Boto, o autor revela-se uma referência nos estudos que tratam da história da arte e da educação em conjunto.

O livro traça um abrangente panorama do ensino e estudo artístico no Brasil, difundidos em consonância com Portugal, quando se desenvolveram projetos que consideravam o desenho “saber fundamental tanto para as elites quanto para as classes populares”. Renato Palumbo Dória começa essa história em 1591: nesse ano, o recém-convertido Álvaro Sanches foi denunciado à igreja pelo sogro por, supostamente, ter profanado uma ilustração de Nossa Senhora retirada do Flos Sanctorum, um livreto sobre a vida e os milagres dos santos. Com a intenção de reproduzir a imagem, o rapaz fizera furos ao seu redor para facilitar seu decalque, gerando um mal-entendido que resultou até mesmo em uma investigação feita pela Companhia de Jesus. Esse é um dos mais antigos registros a fazer referência à prática do desenho no Brasil e a apresentar uma de suas técnicas.

Com a vinda da família real em 1808, que estabeleceu o funcionamento da Impressão Régia no Rio de Janeiro, suspendendo a proibição da impressão de livros no país, a prática do ensino do desenho se fez mais presente. A cidade veria crescer, em pouco tempo, o número de estabelecimentos em que se vendia livros, e com isso o aumento gradual das publicações voltadas para o ensino do desenho. É o caso de Expressions de l’ame (Expressões da alma), de Jean Audran, publicado em 1727 na França, que serviria de modelo para Epítome de anatomia relativa às belas-artes, trabalho publicado em 1837 pelo então diretor da Imperial Academia de Belas Artes, Félix Émile Taunay.

Essas publicações consistiam em folhas avulsas, no formato de cartões, com ilustrações baseadas no corpo e nas expressões faciais humanas. Outros manuais traziam desenhos de animais ou paisagens, reproduções de plantas, flores, frutos, estátuas e pinturas. O objetivo era que o estudante, geralmente nobre, copiasse-as a partir da observação e, assim, desenvolvesse seu talento. Antes das aulas, alguns alertas eram feitos: “para vencer na arte do desenho era preciso haver ‘nascido desenhista’”, como destaca Dória. Para os professores da época, seria “inútil que se continue em uma arte cujo talento lhes é negado, já que o esforço não poderá senão aumentar o número de artistas medíocres”. As mulheres também eram desencorajadas a participar das aulas: elas supostamente teriam “menor capacidade intelectual e de concentração que os homens, devendo ser excluídas de determinados estudos”. Por outro lado, a difusão dessas publicações teve um papel determinante para o público feminino, pois permitia que as mulheres acessassem os conteúdos e os modelos tradicionalmente restritos aos ambientes profissional e de aprendizado masculinos.

O fato é que, ao longo do tempo, o ensino do desenho apresentou uma dupla finalidade. De um lado, carregava um fim moral, “pela edificação e elevação dos costumes públicos por meio da irradiação do belo”; do outro, um objetivo utilitário, “enriquecendo as nações pelo desenvolvimento da indústria artística”. O ensino dessa arte situava-se na divisão entre o que era belo e o que tinha utilidade. Para as elites, era expressão artística. Para os trabalhadores livres ou para as camadas menos abastadas da sociedade, era a possibilidade de desenvolver novos talentos que seriam empregados em ofícios do dia a dia, como a construção, a medicina ou a marcenaria. E se a elite artística desprezava a produção do desenho feita por diletantes, considerando-os incapazes de atingir um nível elevado, aos poucos tornou-se cada vez mais comum que profissionais já estabelecidos – como pintores, arquitetos e engenheiros, além de novos especialistas da área da educação – defendessem um ensino cientificamente orientado e voltado especialmente para esses ramos, excluindo a produção artística do campo prático.

Ao abordar o período que vai do Brasil Colônia aos primeiros anos da República, Dória apresenta as fortes ligações entre estudantes, professores, instituições do e publicações sobre o desenho, destacando os aspectos sociais desse campo de ensino e mostrando como a produção e circulação de conhecimentos nunca se dão no vazio: elas são condicionadas por estruturas muito atuantes, mesmo que aparentemente imperceptíveis. Quando se fala em desenho, pode-se afirmar que seu ensino nunca foi neutro nem desvinculado do contexto social.

Concentrando-se no papel que esses materiais didáticos e seus criadores tiveram no Brasil, a obra apresenta um recorte histórico que evidencia como os modelos educacionais trazidos da Europa foram se ajustando de acordo com os objetivos das elites e lideranças políticas. Escrito de maneira leve, mas detalhada, a obra ainda traz imagens originais localizadas pelo autor em suas pesquisas nos acervos iconográficos brasileiros. Entre o belo e o útil é um livro para os apaixonados pela história da arte e para aqueles que desejam conhecer mais sobre a importância do desenho no passado do país.

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Entre o belo e o útil

Autor: Renato Palumbo Dória

Editora da Unicamp

ISBN: 9786586253771

Ano da Publicação: 2021

Edição: 1

Formato: 23,00 x 16,00 x 1,00 cm.

Nº Páginas: 184 pp

Peso: 290 g

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