Por Luisa Ghidotti Souza
Qual a relação entre trotskismo e teoria literária? Os professores Alfredo Cesar Melo, Elena Brugioni e Paulo de Medeiros falam sobre as novas tendências da literatura comparada no Brasil.
A literatura na sociedade globalizada passa a ser amplamente difundida e os leitores têm a oportunidade de acesso a textos produzidos nas mais diversas partes do mundo. As ideias nacionalistas são gradativamente substituídas por uma abordagem mundial do sistema literário. Uma mostra disso é a publicação do livro Combined and uneven development, em 2015. A obra é organizada e assinada pelo Grupo de Pesquisa de Warwick (Warwick Research Collective – WReC), trazendo uma proposta de autoria coletiva. Foi recentemente traduzida para o português brasileiro por Gabriela Beduschi Zanfelice, e publicada pela Editora da Unicamp. O processo de trazer o livro (Desenvolvimento combinado e desigual) para o Brasil contou com pesquisadores do Grupo Kaliban (Centro de Pesquisa em Estudos Pós-coloniais e Literatura Mundial — Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp) em diálogo com pesquisadores de Warwick.
Para conversar sobre essa edição, entrevistamos três pesquisadores da área que participaram ativamente de sua produção. Elena Brugioni, professora de literaturas africanas e estudos pós-coloniais no departamento de Teoria Literária da Unicamp e trabalha com conceitos da literatura comparada na graduação e no programa de pós-graduação em Teoria e História Literária da Unicamp. Alfredo Cesar Melo é professor no mesmo departamento e coordenador do Kaliban ao lado de Brugioni. Seus estudos são voltados para a literatura nacional e ele tem trabalhado para relacionar a área com as recentes discussões em literatura-mundial. Sua participação na produção dessa obra foi importante para o processo de transposição do vocabulário teórico específico da obra original para o português. O terceiro convidado é Paulo de Medeiros, professor do Departamento de Estudos Ingleses e Literatura Comparada na Universidade de Warwick desde 2013 e membro do WReC e pesquisador associado do Grupo Kaliban.
O encontro entre esses pesquisadores com trajetórias tão diferentes reflete a expansão das fronteiras do campo de estudo e a importância do trabalho coletivo dentro do universo acadêmico.
Editora da Unicamp: Um dos fatores que atraem atenção imediata para a obra é sua autoria colaborativa. Como a escolha por assinar como um coletivo e não recorrer à prática comum de autoria individual corresponde à inclinação teórica da obra?
Paulo de Medeiros: Todo dispositivo universitário e acadêmico está feito não só para inibir o trabalho coletivo, mas também para o castigar. O Coletivo de Warwick formou-se porque os pesquisadores deram-se conta de que o trabalho que queriam fazer com uma intervenção radical no campo da literatura-mundial (world literature) não era possível com uma pessoa só. O objetivo do coletivo de enfatizar a produção colaborativa tem tradição, há uma série de grupos autorais que se recusaram sempre a identificar possíveis autores, como o coletivo francês Comitê Invisível, que tem três livros publicados com essa assinatura e se recusam a dizer quem são. No caso do WReC, é uma tentativa de ir contra os desígnios da universidade de Warwick, que só sabe contabilizar o trabalho individual. De início, deram pouca atenção para a proposta, mas agora o livro tem se dissipado internacionalmente em muitos órgãos. Por isso, quando fui convidado a participar do Coletivo fiquei muito satisfeito por poder ter apoio intelectual em um espaço muito reconhecido.
Alfredo Cesar Melo: Tem um texto famoso, fundacional da literatura-mundial, do Franco Moretti, Conjecturas sobre Literatura Mundial, em que ele trabalha com o conceito de literatura-mundo fazendo referência ao sistema-mundo, não como um objeto novo, mas um problema novo, que exige uma nova metodologia. Acho que a escrita coletiva é um modo de tentar enfrentar esse problema, porque não basta ler bastante, não basta ser um erudito, é preciso juntar esses saberes. Essa é uma estratégia muito inteligente para combater a alienação da divisão intelectual do trabalho, a excessiva especialização. Parece que a autoria coletiva tem a ver também com o problema da literatura-mundo, em que se busca articular vários especialistas, vários estudiosos que individualmente não conseguiriam lidar com essa tarefa imensa.
Editora da Unicamp: O título do livro faz alusão a uma teoria econômica de vertente socialista, iniciada com Trotski. Que relação há entre essa teoria e a proposta de uma nova abordagem da literatura-mundial?
Elena Brugioni: Nessa questão do título tivemos várias conversas entre nós três com a Gabriela Zanfelice [tradutora], porque o posicionamento dos conceitos de desenvolvimento combinado e desigual tem nos obrigado a fazer um trabalho de leitura daquelas que foram as traduções da teorização de Trotsky no Brasil. A meu ver há no livro uma utilização crítica desses dois conceitos, sobretudo uneven (desigual) é particularmente difícil de traduzir em português porque tem várias vertentes e aponta para um leque semântico muito amplo, então nós tivemos que ir atrás daqueles que são os significados mais relacionados com a dimensão materialista e política. É interessante o trabalho que o Coletivo faz de individuar esses dois conceitos a fim de pensar sobre uma dimensão do método, que ao mesmo tempo descrevem a própria obra literária que dá conta dessa desigualdade e dessa combinação. Isso me parece muito interessante a nível de ensino, porque esse livro é trazido para a língua portuguesa para que seja acessível ao aluno que se questiona sobre a dimensão do que é a literatura-mundial. É muito importante, nesse momento, relacionar o campo da literatura com o campo político e econômico do sistema capitalista, principalmente no Brasil. Me parece que o livro mostra como toda literatura é profundamente inscrita no sistema capitalista moderno, em todos os seus desdobramentos, que são combinados e desiguais.
Alfredo Cesar Melo: Essa expressão do Trotsky tem muito a ver com a noção de totalidade do sistema capitalista. É combinado e desigual porque existe uma totalidade que se apresenta de diferentes formas em diferentes lugares do planeta, mas existe uma articulação. Apesar de alguns lugares parecerem arcaicos, outros parecerem ultra modernos, existe uma continuidade, uma articulação entre essas partes e isso faz ser desigual e combinado. No Brasil a gente tem uma tradição materialista na crítica literária que trabalhou muito tempo com essa teoria. Este livro é uma tentativa de dar conta de um quadro ainda mais complexo, que é essa ambição de estudar o universal da literatura-mundial. No Brasil estudamos a articulação entre o arcaico e o moderno, entre o combinado e o desigual, mas sempre no âmbito das literaturas nacionais. Surge, assim, a necessidade de abrir também a nossa agenda de pesquisa nas universidades brasileiras, ter maior interesse pela diversidade do mundo. Só assim a gente poderia juntar uma massa crítica e dar conta de uma dimensão global do problema.
Editora da Unicamp: Como o ensaio articula a teoria do desenvolvimento combinado e desigual na análise dos romances dos autores escolhidos? Para além disso, por que a escolha desse corpus para pensar a relação entre globalização e literatura?
Elena Brugioni: Há a ideia de qual seria o autor ou a autora da literatura-mundial e qual não, com todas as problemáticas que isso levanta do ponto de vista da legitimação da circulação das línguas. Todos esses tópicos são muito bem analisados e esmiuçados dentro desse ensaio e o fato de aparecerem ali autores contraintuitivos para serem objetos de estudo de uma reflexão sobre a dimensão semiperiférica, sobre o conceito de combinação e desigualdade e não como representantes da literatura nacional. Segundo os autores, esses textos, principalmente africanos, dão conta da caracterização o sistema-mundo capitalista. Então essa resposta que o livro dá tem implicações a nível de método e de reflexão muito atuais e muito pertinentes, a ideia de que o próprio teórico ou o leitor seriam o elemento de legitimação do texto. Essa preocupação de desfazer o cânone, não no sentido de procurar alternativas, mas de questionar a própria ideia de cânone, é fundamental e tem a ver com a escolha do corpus.
Alfredo Cesar Melo: Quando eu era professor na Universidade de Chicago, tinha uma disciplina obrigatória para todos os alunos, Reading the World literature, que era extremamente canônica, trabalhava as leituras fundamentais, que anos antes das grandes mudanças sociais nos Estados Unidos se chamava Great Texts, os grandes textos. Retiraram-se os grandes textos da tradição ocidental e incluíram-se leituras em literatura mundial. Mudou o nome, mas a questão de fundo continua a mesma. Eu acho que a radicalidade do livro está em mostrar que esse insight schwarziano que o coletivo consegue desenvolver muito bem é a originalidade da semiperiferia e da periferia, no sentido de mostrar o quanto elas mostram a verdade da totalidade e dão um novo novo ângulo para pensar a totalidade.
Editora da Unicamp: Como o conceito de literatura-mundial dialoga com a literatura comparada e com o pós-colonialismo?
Elena Brugioni: Em minha prática de ensino e pesquisa percebo o pós-colonialismo e a literatura comparada não como disciplinas ou campos definidos, autônomos e distantes. Existe na forma de pensarmos as problemáticas – por exemplo, a colonização vista pelas sociedades que foram colonizadas ou pelas que colonizaram – problemas que se vão sobrepondo e invadindo um ao outro. Historicamente, a literatura mundial é um problema comparatista e, simultaneamente, as literaturas comparadas vão se envolvendo cada vez mais com os chamados estudos pós-coloniais. Muitas vezes essas dimensões teóricas, que são também estéticas, são cruzadas e sobrepostas e não demarcadas ou distintas. A ideia é quebrar um pouco essas fronteiras disciplinares que são, na verdade, artificiais, pensadas para uma política de ensino, de financiamentos. O debate que aparece no livro sobre a ideia de um campo de estudo nivelado pela igualdade, level playing field, é algo que mobiliza completamente a questão da biblioteca colonial, da história imperial, das sociedades colonizadas, das emancipações e dos posicionamentos políticos das periferias do mundo.
Paulo de Medeiros: A literatura mundial veio como uma tentativa de descentralizar a literatura comparada. Depois, os estudos pós-coloniais foi uma tentativa de rejuvenescer o sangue da área, que era extremamente eurocêntrica como disciplina, assim como foi uma tentativa de fazer política acadêmica ao ter em conta que a criação de institutos, de novas publicações, revistas e etc., é também fazer política. A tradição marxista sempre esteve ligada aos movimentos anticolonialistas. Alguns críticos marxistas como o Neil [Lazarus] entendem que houve a elisão dessa transmissão da resistência anticolonial para os intelectuais que aparecem depois – muitas vezes desprivilegiados de suas sociedades, semiperiféricos, de uma certa maneira. No caso do WReC penso que se centra um problema difícil, há por um lado os ataques que são feitos ao coletivo por não ser suficientemente pós-colonial e noutros casos por não ser substancialmente comparável. Nessa tradução do trabalho do WReC publicado no Brasil mostra que, mesmo que venham reações muito negativas ao trabalho, ele permite ir além dos limites dos estudos que se tem em língua inglesa.
Editora da Unicamp: Do ponto de vista da literatura-mundial, como se enfrenta a questão do eurocentrismo e da predominância da língua inglesa no mundo globalizado?
Paulo de Medeiros: Continua a ser um problema da disciplina da literatura comparada, embora a abertura linguística e geográfica hoje em dia já tenha alguma importância e seja direcionada para a Ásia. Há um grande investimento por parte do governo chinês e dos acadêmicos chineses com posição de destaque nos órgãos internacionais da disciplina e nas publicações e acho que isso vai aumentar muito rapidamente nos próximos dez anos com a quantidade de alunos formados em universidades européias e americanas de origem chinesa que estão a trabalhar em questões de literatura-mundial usando textos e assuntos de interesse social chinês. Existe ainda a questão da África que começa a aparecer. A África do Norte tem uma produção em língua árabe e produções em inglês e em africâner da África do Sul. Assim, há trabalhos de literatura-mundial que se afastam muito do eurocentrismo.
Alfredo Cesar Melo: Eu acho que o mapa da literatura-mundial cresceu muito, a gente saiu desta noção da literatura comparada com sua geografia no Atlântico Norte. O livro é muito pujante nesse quesito, de mostrar a diversificação global. A questão aqui não é só epistemológica no sentido da ideia do eurocentrismo, mas é uma questão, para mim, material. A publicação de um livro como esse em português nos inspira a emular padrões de produção dentro das universidades paulistas. Eu acho que isso não está totalmente fora do alcance, embora a gente tenha alguma desvantagem. No caso do Brasil não tem só a questão das condições materiais, mas também a mentalidade do letrado brasileiro, o comparativismo brasileiro ainda é extremamente brasiliocêntrico e lusocêntrico. Parece que são vários frontes em que a gente tem que atuar para mudar e redesenhar o comparativismo brasileiro.
Editora da Unicamp: Como a literatura-mundial vem sendo discutida no Brasil ou por brasileiros e em Portugal ou por portugueses?
Alfredo Cesar Melo: A literatura-mundial na academia brasileira também vem sendo recebida como um modismo intelectual, como foi a desconstrução dos estudos culturais, por exemplo. Existe o fato de nós termos um estímulo intelectual dependente, periférico. Sempre dependemos das últimas modas que são criadas no centro. Acho que o grande desafio é tentar se afastar do modismo intelectual e incorporar de maneira substantiva o problema da literatura-mundial na nossa agenda de pesquisa. A grande contribuição do Coletivo WReC é mostrar que existem pressupostos metodológicos por trás de uma proposta e que não se trata simplesmente de uma mudança de etiqueta, uma mudança de mercadoria teórica, que você vai lá no supermercado das universidades europeias e americanas e consome. Pensando noutra perspectiva, presente nos ensaios da literatura-mundial – inclusive, Roberto Schwarz é citado no artigo do Franco Moretti como inspiração -, a questão da dependência cultural, da simetria, da divisão internacional do trabalho intelectual já fazia parte das reflexões, sempre houve uma obsessão em pensar o lugar do Brasil no mundo, das relações do Brasil com o mundo. Mas também são reflexões muito centradas no nacional. O desafio é vencer esse modismo. A publicação desse livro tem um papel importante nesse sentido.
Paulo de Medeiros: Em Portugal a introdução da disciplina da literatura comparada foi extremamente importante e ocorreu a partir dos anos 1980. Maria Alzira Seixo foi uma das fundadoras da literatura comparada e teve uma posição de muito destaque a nível internacional, incluindo a nomeação como presidenta da Associação Nacional de Comparatistas, que é o órgão que melhor representa a disciplina. Tiveram alunos e alunas que fundaram o Centro de Estudos Comparatistas de Lisboa. O Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, no Porto, tem desenvolvido significativamente a tradição sobre estudos nesse campo e produzido os Cadernos de literatura comparada. A disciplina renovou o interesse e permitiu a participação de acadêmicos em outras universidades recém-criadas. Isso inflou um ar completamente novo nos estudos literários portugueses. Depois, a literatura mundo começou a ser discutida em Portugal a partir do Centro de Estudos Comparatistas de Lisboa. Teve um desenvolvimento importante em colaboração com o instituto de world literature em Harvard, um grupo que segue as ideias que David Damrosch lançou no seu livro “What is world literature?“.
Editora da Unicamp: Essa obra pode vir a acarretar mudanças nas relações de ensino e aprendizagem em estudos literários no Ensino Superior no Brasil?
Elena Brugioni: As nossas expectativas quando surgiu a ideia dessa produção era que todo esse investimento valeria a pena pelas potencialidades que vislumbramos no ensaio. Já o usei, por exemplo, num curso do Programa de Pós-Graduação em Teoria e História Literária do IEL e devo dizer que as respostas dos alunos foram muito positivas. Ficou evidente que os estudantes e as estudantes estavam se deparando com algo novo, que até então não tinha sido pautado no percurso deles. Sobretudo alguns conceitos que assombram um pouco a teoria literária no Brasil, como modernidade, periferia, semiperiferia, desenvolvimento combinado e desigual, sistema literário mundial, literatura-mundial. Assim, a minha sensação é que esse texto tem um conjunto de potencialidades, sobretudo no ensino da literatura comparada e no debate sobre o que significa a literatura-mundial. As expectativas são que possa haver um estímulo ao debate. Eu aprecio muito essa ideia de que a teoria pós-colonial e o comparativismo sejam campos de disputa intelectual de debate teórico e crítico. Espero que esse texto seja discutido, seja mastigado, seja problematizado, seja questionado. Acredito que vai ser uma pedra no charco. Algo que mexe um pouco nossas formas de pensar.
Alfredo Cesar Melo: Concordo com a Elena, acho que o livro vai trazer um debate que possa ser emulado, no sentido de imitado, para ser também superado. Para não ficar na relação do livro como um ditame metropolitano que chega de fora e tem que ser aplicado. Não é isso. Então, eu vejo com bons olhos essa publicação e sua tradução e acho que o debate no Brasil sobre a literatura-mundial tem muito ainda a adensar e a ganhar volume.
Paulo de Medeiros: Desde o início pensei que seria fundamental acrescer uma tradução dessa obra em língua portuguesa, mas no Brasil e não em Portugal, por todas as razões. Não só porque a grande maioria de possíveis leitores estão no Brasil, mas também por causa da posição que o Brasil ocupa e que para nós é importante. A possibilidade de publicar o livro pela Editora da Unicamp é especial. Uma editora que está no centro de tradição nas suas publicações, tanto no que diz respeito à autoridade como na dimensão ideológica.
SOBRE O LIVRO

Desenvolvimento combinado e desigual: por uma nova teoria da literatura-mundial
Autor: Coletivo de Pesquisa de Warwick
Tradutora: Gabriela Beduschi Zanfelice
ISBN: 978-65-86253-29-0
Edição: 1ª
Ano: 2020
Páginas: 344
Dimensões: 14×21