Direito LGBTI+: entre a promessa e o enfrentamento

Por Everaldo Rodrigues

As duas últimas décadas trouxeram momentos promissores e desafiadores para a comunidade LGBTI+ no Brasil. Por um lado, foram anos marcados pela instituição do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de LGBT (CNDC/LGBT) e de projetos que estabeleciam o compromisso de o Estado reconhecer os direitos da comunidade LGBTI+ à educação, à saúde e à moradia. Por outro lado, desde o ano de 2016, há um visível repúdio e uma oposição de parte do eleitorado nacional a essas políticas. Essa rejeição, apoiada em uma agenda de disputa e reposicionamento do que seriam os “direitos humanos”, foi fundamental para a eleição de Jair Bolsonaro para presidente da República. As várias reformulações políticas e ministeriais promovidas no início de seu mandato demonstram o objetivo de dissolver ou tornar inúteis aquelas iniciativas. É nesse contexto de muito embate, mas também de algumas conquistas, que a Editora da Unicamp lança Direitos em disputa: LGBTI+, poder e diferença no Brasil contemporâneo, livro organizado por Regina Facchini e Isadora Lins França.

Ambas são doutoras em Ciências Sociais e pesquisadoras do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, fundado em 1993 e resultado do trabalho de pesquisadoras inseridas em campos disciplinares distintos que buscavam dialogar com as teorias feministas e de gênero. Com Direitos em disputa, elas apresentam um conjunto diverso de estudos sobre diversidade sexual e de gênero, com uma seleção abrangente de trabalhos que marcam o conhecimento sobre gênero e sexualidade produzido nos últimos 20 anos nas Ciências Humanas.

Segundo as organizadoras, alguns dos autores do livro oferecem “contribuições altamente relevantes para a compreensão de variados aspectos que envolveram o período da cidadanização”, e seus textos permitem um novo olhar sobre aquele momento histórico, uma vez que estão situados nas circunstâncias de enfrentamento reacionário atual. Já outros autores presentes na obra “têm construído suas abordagens […] partindo do cenário contemporâneo de desmonte e ofensiva antigênero”, iluminando, dessa forma, importantes aspectos do governo vigente.

Outro ponto levantado pelas organizadoras é que a maioria dos trabalhos destaca o período pós-impeachment de Dilma Rousseff e a eleição de Jair Bolsonaro para presidente como “balizas temporais importantes, que organizam um antes e um depois na reflexão que apresentam”. Isso ocorre porque são acontecimentos que marcaram aquele que seria o início do ataque aos direitos sexuais e do que elas chamam de ofensiva antigênero no Brasil. Transparecem, daí, duas perspectivas: a primeira que enfatiza o “desmonte de políticas públicas para LGTBI+ e o ataque constante a esses sujeitos no plano ideológico do atual governo”; e a segunda que faz um alerta para aquilo que não é só um desmonte das políticas de proteção à comunidade LGBTI+, mas também “uma nova política em curso, que é antidireitos e produz marginalização” não só de LGBTI+, como de mulheres, pessoas negras, indígenas, quilombolas etc. Assim, o livro trabalha com um olhar tanto retrospectivo quanto prospectivo das disputas, dos agenciamentos e dos inúmeros sentidos em torno da diversidade de gênero e sexualidade.

O livro é dividido em cinco partes. A primeira delas, “Ciência, política, diferença e processos de mudança”, explora as ligações entre sexualidade, gênero e o mundo da política, assim como os processos de mudança histórica que impactam na forma como as diferenças operam socialmente. São textos relacionados às diversas formulações do acrônimo que nomeia o movimento LGBTI+ ao longo dos anos, às relações entre conhecimento, política e poder dentro do movimento e a sua atuação nas políticas públicas. Eles também abordam as transformações ocorridas no espaço da universidade diante da inclusão de grupos LGBT e as noções de “velhos LGBT” e de “velhice LGBT” no Brasil.

A seguir, em “Estado, direitos e políticas públicas”, os textos dedicam-se a analisar as políticas relacionadas a LGBTI+ no Brasil nas últimas décadas. A segunda parte debruça-se sobre a construção dessa população como sujeito de direitos no Brasil, sobre as políticas públicas voltadas para ela na primeira década dos anos 2000, assim como sobre as políticas do governo Bolsonaro relacionadas a gênero e a educação. Além de trabalharem questões ligadas à “ideologia de gênero”, termo situado dentro de uma retórica política de origem religiosa, os textos também realizam um investimento crítico sobre a manutenção de terapias de conversão ou reversão (conhecidas como “cura gay”), não apenas nas práticas de comunidades terapêuticas, mas também como política de Estado e como biopolítica de controle subjetivo e social.

Na terceira parte, “Corpos, sujeitos e movimentos”, os textos exploram esses três temas com base nas articulações pelas quais gênero, sexualidade, classe social e raça produzem lugares de violência, mas também possibilidades de ação política. Seus autores tratam dos casos de violência e LGBTfobia e da prática de associá-los à criminalidade, das relações entre raça, gênero e sexualidade a partir da constituição de uma “cena preta LGBT”, além de analisar as formas contemporâneas de ativismo e a recente emergência das transmasculinidades na cena pública brasileira.

A penúltima parte, intitulada “Conservadorismo, política sexual e educação”, alerta para os problemas de uma abordagem dicotômica entre religião e direitos. São textos que oferecem panoramas das alianças evangélicas focadas na “cruzada antigênero” e da atuação política de cristãos progressistas, referindo-se à diversidade sexual, de gênero e aos grupos organizados de cristãos LGBT no Brasil. A “ideologia de gênero” retorna como tema, dessa vez como fenômeno histórico-político e como retórica conspiratória baseada no estabelecimento de inimigos. Também exploram o modo como políticos conservadores têm utilizado de uma visão rígida das relações de gênero e sexualidade centrada na noção de “família tradicional” e na negação das diferenças sexuais para se contrapor à diversidade de gênero; analisam como diferentes instituições, particularmente no campo da educação, vêm lidando com as questões sexuais que relacionam juventude e gênero; e como essas questões, por sua vez, tensionam os espaços institucionais nos quais se desenrolam.

Situando-se na articulação entre saúde, gênero e sexualidade, os textos da última parte têm como temática “Saúde, processos de regulação e de cuidado”. Eles retomam a história das políticas sanitárias voltadas à diversidade sexual e de gênero e discutem o atendimento da população trans pelos serviços de saúde. Também abordam as negociações técnico-políticas contemporâneas em torno da intersexualidade, com especial atenção aos debates no campo da bioética, e discutem as resoluções do Conselho Federal de Psicologia sobre as normas relativas à orientação sexual e à identidade de gênero, acompanhando os ataques, as articulações e as disputas que envolvem essas medidas nos campos jurídico, religioso e profissional.

Em Direitos em disputa, encontram-se textos engajados e dedicados a oferecer enquadramentos para a compreensão de temas tão tensionados e atuais a partir de um conjunto altamente interdisciplinar. Psicologia, Antropologia, Sociologia, Educação, Saúde e Direito concorrem todos para a produção de um todo multifacetado. A obra evidencia um rico panorama do que tem sido produzido em relação ao tema da diversidade sexual e de gênero no Brasil, oferecendo uma valiosa leitura crítica do cenário atual de ataque aos direitos e à dignidade de LGBTI+, mas sem esquecer de enfatizar que as saídas possíveis passam também pelas mudanças nos ativismos. Uma leitura essencial para a compreensão e defesa de uma comunidade fragilizada pelo estigma cultural e social, mas que permanece em luta constante pelos seus direitos.

Para saber mais sobre o livro e adquirir o seu exemplar, acesse o nosso site!

Direitos em disputa: LGBTI+, poder e diferença no Brasil contemporâneo

Organizadoras: Regina Facchini e Isadora Lins França

ISBN: 9786586253580

Edição: 1

Ano: 2020

Páginas: 536 p

Dimensões: 23,00 x 16,00 x 2,50 cm

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