Cadernos de desenho, criatividade e estudo

Por Everaldo Rodrigues

“A arte tem representado, desde a Pré-História, uma atividade fundamental do ser humano.” Alfredo Bosi, Reflexões sobre a arte

Quando um artista deixa uma marca indelével na área em que atuou, é inevitável que, ao longo dos anos, suas palavras e seus posicionamentos em outros aspectos da vida também despertem interesse. É muito comum, por exemplo, que escritores relevantes tenham suas correspondências analisadas por muitos anos ou que composições e gravações de músicos famosos sejam lançadas após sua morte. No caso das artes plásticas, essa espécie de espólio criativo também gera muito interesse em pesquisadores da área. Colaborando com esse interesse crescente, algumas publicações permitem o acesso a trabalhos que, guardados há muito tempo, podem ajudar a entender os caminhos que os artistas percorreram até atingir o que consideravam sua excelência criativa. E facultam ao leigo apreciador de arte o contato com os bastidores da produção artística. Esse é um dos papéis da Coleção Cadernos de Desenho da Editora da Unicamp.

Contando com oito volumes, a coleção é coordenada por Lygia Eluf, doutora em Artes Poéticas Visuais pela USP e criadora do Centro de Pesquisa em Gravura da Unicamp. Eluf também desenvolve, desde 1980, um projeto artístico pessoal em desenho, gravura e pintura, participando de exposições no Brasil e no exterior, além de atuar na organização de eventos artísticos e curadoria. A coleção representa parte importante da pesquisa de Eluf: “Eu tinha a ideia fixa de trazer à tona acervos que ficariam guardados no fundo da gaveta do ateliê e que as pessoas jamais veriam”, conta a pesquisadora em entrevista publicada em 2012. “A maioria dos artistas trabalha com anotações, em cadernos ou não: por vezes são registros rápidos e sintéticos, por vezes complexos e refinados; são registros do modo de pensar, que permitem maior compreensão da obra final”, ela completa, sintetizando, dessa maneira, o objetivo principal da coleção: permitir a compreensão do processo de criação dos artistas, por meio da publicação de esboços, croquis, projetos que serviram como recordação e registro para o artista. Os esboços sugerem momentos de cumplicidade únicos, geralmente acessíveis somente aos olhos do próprio artista.

Os oito artistas, cujos cadernos foram publicados, formam um interessante leque de facetas artísticas. São pintoras, pintores e gravuristas de estilos díspares, com visões variadas, o que torna o estudo de seus esboços uma rica investigação acerca dos processos criativos e da maneira como enxergavam o mundo. Entre eles, há nomes famosos do modernismo brasileiro, como Anita Malfatti, Flávio de Carvalho e Tarsila do Amaral. Encontramos também Fayga Ostrower e Eliseu Visconti, artistas nascidos na Europa, mas que tiveram uma relação muito próxima com o Brasil, e artistas brasileiros de atuação mais recente, como Iberê Camargo, Marcelo Grassmann e Renina Katz.

O volume dedicado a Eliseu Visconti traz diversos esboços, obras em andamento que mostram características interessantes de seu traço, das texturas e de seus experimentos com diversos enquadramentos. Já o caderno de Flávio de Carvalho reproduz 105 ilustrações publicadas, em 1956, para acompanhar os artigos da coluna “A Moda e o Novo Homem”, assinada pelo gravurista no Diário de S. Paulo. Mais variado é o caderno de Iberê Camargo: nele, estão seus primeiros desenhos, feitos em Porto Alegre e no Rio de Janeiro, assim como aqueles produzidos durante sua formação em Roma e Paris, seguindo sua carreira de desenhista até às vésperas de sua morte. É um caderno que mostra o quanto o artista seguiu os passos dos tratadistas italianos do Renascimento, que salientavam a importância do desenho na formação de pintores e escultores.

Entre os trabalhos produzidos por mulheres, o caderno de Anita Malfatti mostra a diversidade de orientações dentro de sua produção, os percalços e hesitações, assim como os êxitos. O desenho ocupou uma posição de centralidade ao longo de sua trajetória, uma vez que dominar o desenho significava, para ela, ultrapassar suas próprias limitações pessoais. Já o caderno de Fayga Ostrower é um caso à parte: são desenhos simplificados de gravuras que ela vendeu, com anotações que descrevem as cores empregadas para a impressão e até mesmo seus compradores. Tudo feito de maneira simples o suficiente para indicar à memória da artista a que obra se referem, servindo para que ela pudesse recordar-se de cada gravura.

O caderno dedicado a Tarsila do Amaral é o maior sucesso da coleção. Publicado originalmente em 2008, ele traz aspectos pouco conhecidos da produção da pintora. Ela usava recorrentemente seus cadernos, seja como bloco de anotações, como carnês de viagem ou mesmo como diário, onde guardava pensamentos que serviriam para nortear o processo de construção posterior. O livro, que recebeu o Prêmio Jabuti de 2009 na categoria “Arquitetura e Urbanismo, Fotografia, Comunicação e Artes”, estava esgotado, mas recebeu em 2020 uma nova reimpressão. A boa recepção do livro indica o interesse no estudo dos esboços de Tarsila do Amaral e sua importância dentro das artes plásticas brasileiras.

Para estudantes, pesquisadores e amantes das artes visuais, os Cadernos de Desenho são uma oportunidade de travar contato com momentos que precederam grandes criações e de testemunhar a necessidade de estudo constante e o caráter experimental inerentes ao desenho. Como escreveu Eluf, “O desenho é o modo imediato de registro de nosso olhar. Por meio dele, interpretamos o que vemos, o que sentimos e nossa relação com o mundo”. Assim, a criatividade mostra-se como mais do que o resultado de uma inspiração divina: é uma construção, um processo de tentativas e erros cujo resultado é a arte.

Para saber mais sobre a coleção e adquirir os seus exemplares, acesse o nosso site!

Coleção Cadernos de Desenho

Tarsila do Amaral

Organizador: Lygia Eluf

ISBN: 9788526808140

Edição: 1

Ano: 2008

Páginas: 104 p.

Dimensões: 23,00 x 23,00 x 0,60 cm

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