
Por Everaldo Rodrigues, Gabrielle Teixeira, Jennifer Araújo, Mariana Bercht, Thaís Rodrigues, Sophie Galeotti, Victória Rodrigues, Vinícius Russi e Vitória Lisboa
Há muito tempo, as produções literárias têm levantado questões sobre a sociedade e as relações humanas, mas, às vezes, é necessário questionar a própria literatura, discuti-la, confrontá-la. Marcos Natali faz esse exercício de colocar a instituição literária contra a parede em A literatura em questão: sobre a responsabilidade da instituição literária.
Natali é livre-docente pela USP, onde leciona Teoria Literária e Literatura Comparada e desenvolve pesquisas sobre literatura latino-americana contemporânea, teoria pós-colonial e sobre a relação entre literatura e ética. Neste livro, ao longo de nove capítulos e de um post-scriptum, o autor consegue reunir a maioria desses temas, analisando produções que vão de Candido a Derrida, de Foucault a Arguedas e de Ángel Rama a Monteiro Lobato.
O primeiro capítulo, intitulado “Além da Literatura”, detém-se sobre as seguintes questões: Qual o conceito de literatura? Ele é o mesmo em todas as culturas? Há uma literatura mundial? Todos possuem o direito fundamental a ela? Natali faz uma crítica ao texto “O direito à literatura”, de Antonio Candido, que sustenta a existência de uma literatura universal, mas limita a sua noção às produções canônicas de matriz europeia.
O segundo capítulo, “José María Arguedas aquém da literatura”, traz a figura do escritor peruano Arguedas. Natali o apresenta como um exemplo de destaque entre os escritores hispano-americanos de meados do século XX, por ter assimilado a modernidade pela cultura local em seus escritos, seguindo um movimento contrário à transculturação. Esta é, para Ángel Rama, a capacidade da literatura de incorporar línguas, visões de mundo e tradições culturais ー a absorção da tradição local pelo europeu. A fim de apresentar ao leitor o cenário literário andino, em que Arguedas estava inserido, e para justificar o porquê de tê-lo destacado ao dissertar sobre o processo transculturador, Natali traz trechos de seus livros que evidenciam esse caráter localista em harmonia com o universalismo literário e discute conflitos vividos pelo autor, entre os quais a questão da língua em que deveria escrever.
No capítulo seguinte, o autor analisa Os rios profundos, romance de 1958, escrito em um intervalo de 15 anos durante o qual Arguedas atuou como etnógrafo na região andina. Visto como “a esperança de unificação da dualidade nacional”, o autor peruano afasta-se da rigidez da escrita científica e explora diferentes possibilidades e limitações da literatura. Apesar de aproveitar-se de recursos como o uso de silenciamentos e ocultamentos, o deslocamento do narrador e o emprego de múltiplas camadas linguísticas, esbarra em limitações como a obrigatoriedade de tradução e a impossibilidade de atingir seu público ideal. Assim, Natali reflete a respeito da relação entre literatura e as complexidades da sociedade peruana levando em conta tanto o enredo quanto a estrutura da obra de Arguedas.
Abordando a relação entre literatura e ética, o quarto capítulo é guiado pela análise do texto “Circonfissão”, de Derrida, uma elegia escrita enquanto o autor acompanhava a mãe no leito de morte. Para melhor refletir sobre essa elegia, Marcos Natali recorre às diferentes leituras de Derrida, Kierkegaard, Lévinas e Rancière sobre o “Evangelho segundo Mateus”, mais especificamente a respeito do chamado de Deus a Abraão e da escolha do sacrifício do primogênito como prova de fidelidade absoluta a Deus. O dilema abraâmico polariza a paixão e a ética, uma vez que a prova de fidelidade e amor absolutos demanda o assassinato. Derrida, apesar de reconhecer a brutalidade do pedido feito a Abraão, vê nele uma estrutura comum à vida. Um ser é responsável por muitos outros, e qualquer resposta ao chamado de um “envolve a decisão de sacrificar outros”. A “Circonfissão” relaciona-se especialmente com a escolha, uma vez que, ao escrever a elegia, Derrida lança seu olhar ou à página ou à mãe. A publicação do texto, por sua vez, transforma a resposta devida à mãe em uma resposta aos leitores, assim podendo conciliar o trabalho de luto (do filho) e o filosófico (do autor). Mas, se há conciliação, por que permanece em Derrida a culpa por transformar a agonia do outro em um texto que pode ser lido como literatura? Por meio de cenas como essas, em que a fidelidade a uma paixão pode suspender a ética, Natali busca pensar a relação entre literatura e ética: há algum dever absoluto em relação à literatura? Existe uma paixão puramente literária?
No quinto capítulo, o autor analisa o debate a respeito do racismo nas obras infantis de Monteiro Lobato. Iniciada em 2010, após o protocolo de uma queixa no Conselho Nacional de Educação, a controvérsia envolveu vários nomes do mercado editorial, da literatura e da crítica literária. Mais do que propor uma análise da pertinência da questão em relação à obra de Lobato, Natali dedica-se à forma como o debate se deu e a como os posicionamentos foram tomados, com o uso do escárnio e do fantasma da censura como formas de desviar o foco do cerne da questão: o lugar ou não de livros em que há manifestações de racismo na educação em um país racista.
Já o sexto capítulo, intitulado “Grafoterapia”, inicia-se com o autor descrevendo como Michel Foucault, em seu livro História da sexualidade, contesta a versão segundo a qual teria havido uma passagem de um ambiente de “tolerante familiaridade” com o obsceno para um no qual se consolidaram os chamados “códigos de indecência”. Ao mesmo tempo que novas regras de conduta foram elaboradas, disponibilizou-se uma série de mecanismos para a transformação do sexo em discurso, como o confessionário e o consultório médico e psicológico. Partindo de Foucault, Natali faz uma leitura da novela de Mario Bellatin La jornada de la mona y el paciente, relato no qual o personagem, um escritor e paciente psicanalítico, é incitado à expressão e à fala autobiográfica, as quais são objeto de análise, prática justificada pela utilidade que pode ter para o indivíduo ou para a coletividade. Dentre as formas de expressão, está incluída a escrita literária, apresentada como algo íntimo para o personagem, comparada à exposição da própria nudez, como pode ser visto no trecho “Preocupação com expor o corpo a outras pessoas. O dia em que alguém revise meus papéis”.
Em “As mortes da literatura”, sétimo capítulo da obra, Natali apresenta algumas ideias sobre a extinção da literatura. Recorrendo a um ensaio escrito pelo crítico literário Fredric Jameson, o autor discute o possível desaparecimento da literatura, comentando também a declaração do filósofo Hegel sobre o fato de a arte estar se tornando algo do passado. Natali questiona as consequências de a literatura chegar ao seu fim na atual geração e destaca que sua morte é anunciada desde que ela foi inventada, sendo abordada por grandes pensadores, como Lukács, Adorno, Kafka, Blanchot, entre outros. A extinção da literatura não é uma impossibilidade histórica (se um dia ela começou, algum dia poderá terminar), mas sua morte pode ser entendida como algo literário, como ecos do Romantismo em relação à proximidade do fim. O capítulo encerra-se com a apresentação de três cenas literárias dos autores hispano-americanos Mario Bellatin, Álvaro Enrigue, David Toscana e Ricardo Piglia para contextualizar a relação existente entre a literatura e a morte.
No oitavo capítulo, Natali retoma a obra do peruano José María Arguedas, destacando o romance El zorro de arriba y el zorro de abajo e o fato de que ler esse livro hoje é algo que não se pode fazer ignorando o suicídio de seu autor, assim como é impossível não notar o quanto ele é entremeado pelo prenúncio desse ato. Também são analisados os ecos do texto de Arguedas nas obras de Mario Bellatin e Roberto Bolaño, com atenção para o que parece ser uma noção terapêutica de escrita e de vida conectadas, “com a promessa da interdependência entre as duas, e a definição da morte como tema e fim da escrita”.
O capítulo seguinte retoma, por sua vez, Bolaño e o mote da inevitabilidade da violência presente em seu conto “El Ojo Silva”. Aproximando textos de Giorgio Agamben e Pier Paolo Pasolini, o autor aborda a questão do empobrecimento da experiência, indicada nos anos 1930 por Walter Benjamin, para estudar os conflitos dentro desse conto e analisar como ele parece contrariar certas convenções a respeito da violência (como a incapacidade de escapar dela), seja ela narrada ou não.
Por fim, no Post Scriptum, Marcos Natali apresenta a complexidade do magistério do ponto de vista de uma professora. Com ela percorremos o preparo de uma aula: a escolha dos textos-base, o planejamento do que dizer, a excitação em ministrar a aula, a esperança em sair do monólogo para o diálogo, a tarefa de transformação da oralidade escrita e o anseio pela aula seguinte. Parafraseando García Lorca e fundamentando-se em Foucault, Derrida e Badiou, a professora faz um exercício de alteridade ao refletir acerca dos diversos contextos que precedem e integram a aula, como as condições de presença dos alunos e as conversas atravessadas. Natali resgata reflexões de Rancière ao demonstrar as hierarquias das relações na sala de aula, bem como o privilégio paradoxal do ensinar. O autor retoma Foucault e Deleuze e apresenta as condições contextuais para a produção textual, a concepção discursiva e as estratégias interativas entre mestre e aprendiz. No trecho final, a professora traz o percurso da transformação do não ao sim, valendo-se de textos literários de Virginia Woolf e James Joyce. O texto encerra com um convite: que continuemos nossas reflexões para que a práxis pedagógica vá além do ensino-aprendizagem.
Por refletir sobre tantos temas polêmicos, mas incontornáveis, envolvendo a instituição literária, A literatura em questão faz-se uma leitura fundamental para todos que desejam aprofundar seus conhecimentos acerca de tais discussões. Natali oferece um conteúdo atual e essencial ao pesquisador e ao estudante de literatura.
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A literatura em questão: sobre a responsabilidade da instituição literária
Autor: Natali, M.
Editora: EDITORA UNICAMP
ISBN: 9786586253443
Edição: 1a
Ano: 2020
Formato: 23,00 x 16,00 x 2,00 cm
Páginas: 280
Peso: 300 g