História inseparável da vivência humana

Por Everaldo Rodrigues

Sempre que olhamos para o passado, seja para entendê-lo, seja para retirar dele conclusões que expliquem o nosso presente, devemos evitar algumas armadilhas. Uma delas é o reducionismo histórico, isto é, a tendência de correlacionar acontecimentos a fim de sustentar teorias que tentam explicá-los de maneira simplificada. Muitas vezes, esses acontecimentos são complexos e não podem ser simplesmente conectados como meros fatos encadeados, sendo necessária uma análise mais profunda e isolada de seus precedentes e singularidades. É o que nos ensina E.P. Thompson em um de seus mais consagrados textos, “As peculiaridades dos ingleses”, presente na coletânea de mesmo nome organizada por Antonio Luigi Negro e Sergio Silva. O livro reúne escritos de Thompson que analisam aspectos muito particulares da política inglesa sob o ponto de vista histórico.

Entre os textos reunidos em As peculiaridades dos ingleses e outros artigos, constam “A história vista de baixo”, publicado originalmente em 1966, no qual Thompson trata dos problemas relacionados ao estudo da classe operária inglesa, tida como a mais antiga, mas também como a mais ignorada pelos acadêmicos clássicos, e “Algumas observações sobre classe e ‘falsa consciência’”, de 1977, em que justifica sua ideia de classe social e critica intelectuais que caracterizam o conceito apartando-o de seu elemento humano. Os capítulos são todos contextualizados e alguns termos mais particulares da história e da política inglesa são explicados em diversas notas de rodapé, enriquecendo o estudo e a experiência de leitura. A coletânea traz uma pequena biografia de Thompson, escrita por Sergio Silva, e uma introdução ao capítulo principal, elaborada por Alexandre Fortes, Antonio Luigi Negro e Paulo Fontes. Esses textos introdutórios permitem uma melhor compreensão do contexto histórico em que o historiador produziu seus artigos, assim como da influência de suas experiências de vida em seus estudos. O livro conta ainda com um texto emocionado de Eric Hobsbawm, originalmente publicado na ocasião da morte de Thompson, em 1993, destacando a importância do historiador inglês tanto intelectualmente, quanto em sua vida pública.

Aqui, abordaremos com mais profundidade o capítulo que dá título à coletânea, “As peculiaridades dos ingleses”. Para isso, uma breve contextualização é necessária. Em meados de 1950, Thompson era militante do Partido Comunista da Grã-Bretanha. Reunindo-se com outros estudiosos, criou o Grupo de Historiadores do Partido Comunista Britânico, “um dos principais núcleos de elaboração e desenvolvimento do marxismo na Inglaterra”, como consta na “Introdução” do livro. A partir de uma perspectiva marxista, os integrantes do grupo buscavam compreender como operava o capitalismo inglês. Rupturas no núcleo do partido, no entanto, resultaram na saída de vários deles em 1956, incluindo o próprio Thompson. Isso representou um novo passo nas políticas de esquerda inglesas. Unido aos dissidentes, ele formou o núcleo do movimento político denominado “Nova Esquerda” e fundou, juntamente com John Saville, a revista New Reasoner. O periódico foi um espaço de publicação acadêmica que permitiu diversos debates, como as reflexões acerca da dissidência comunista e de oposição ao stalinismo, na época alvo de críticas devido às denúncias dos expurgos praticados na União Soviética até então.

A Nova Esquerda perderia força no início dos anos 1960, levando uma nova geração de pensadores, a chamada “Segunda Nova Esquerda”, a assumir a revista, então intitulada New Left Review. O debate político mudou bastante, influenciado pelo estruturalismo marxista de Louis Althusser, cuja postura teórica ia de encontro ao pensamento de Thompson. É nesse contexto que ele escreve o principal capítulo dessa coletânea, “As peculiaridades dos ingleses”.

O texto foi escrito como uma resposta e uma crítica aos artigos de Perry Anderson e Tom Nairn publicados na New Left Review. O capítulo permite ao leitor o “contato com uma série de temáticas e debates que constituíam as principais preocupações de Thompson, tanto do ponto de vista político quanto historiográfico, presentes em praticamente quase toda sua obra”. Seu principal objetivo foi desmontar a comparação, feita por Anderson e Nairn, entre a Revolução Inglesa de 1640 e a Revolução Francesa de 1789. Também foi “uma tentativa não apenas de resgatar o conjunto do projeto historiográfico do grupo de historiadores do Partido Comunista, mas também de atualizá-lo segundo as novas condições da década de 60”. O historiador aborda não só a Revolução Inglesa do século XVII, como também a formação e o desenvolvimento das classes sociais na Inglaterra ao longo de três séculos.

Seu texto demonstra um profundo interesse no desenvolvimento da pesquisa sobre as formas nacionais particulares de dominação de classe e de resistência popular a fim de fundamentar um projeto socialista democrático e humanista. Isso, evidentemente, sem esquecer “importantes sistematizações sobre sua concepção de história e de temas centrais de sua obra, como o conceito de classe social e a crítica ao modelo de base–superestrutura”, sempre pensando no sentido dessa “peculiaridade” do povo inglês.

A crítica principal é ao reducionismo empregado pelo marxismo althusseriano, revelada por uma análise dos acontecimentos sociais e culturais que não levava em conta as vivências particulares de homens e mulheres, como se ideias e eventos fossem “em essência, a mesma coisa que o contexto causal”. Thompson considera que eventos econômicos são, também, eventos humanos e que, ao ignorar essa relação, se ignora a experiência de pessoas reais. É nesse sentido, por exemplo, que o autor entende a formação das classes sociais não como um resultado do modo de produção, mas como um fenômeno histórico, efeito das relações entre os seres humanos e seus contextos.

“Classe é uma formação social e cultural (frequentemente adquirindo expressão institucional) que não pode ser definida abstrata ou isoladamente, mas apenas em termos de relação com outras classes; e, em última análise, a definição só pode ser feita através do tempo, isto é, ação e reação, mudança e conflito. Quando falamos de uma classe, estamos pensando em um corpo de pessoas, definido sem grande precisão, compartilhando as mesmas categorias de interesses, experiências sociais, tradição e sistema de valores, que tem disposição para se comportar como classe, para definir, a si próprio em suas ações e em sua consciência em relação a outros grupos de pessoas, em termos classistas.”

Para Thompson, classe é um “acontecimento”. Com isso, ele quer deixar evidentes essas “peculiaridades”, essa particularidade histórica, ou seja, como os acontecimentos ocorreram de maneira diferente na Inglaterra e como as classes sociais se desenvolveram ali de jeitos distintos do restante da Europa. E quer assinalar, acima de tudo, a importância da análise histórica para a determinação de tais pontos, nunca passando a teoria por cima dos fatos e sim ajustando-a aos acontecimentos reais, às vivências, às experiências e ao registro historiográfico. A partir disso, é possível apontar o centro do pensamento de Thompson: uma teoria que preza a perspectiva da realidade histórico-social, percebida como contínua e sujeita a transformações. Ele indica, dessa forma, a percepção de que uma categoria teórica precisa ser considerada histórica para ser válida. De certa forma, o autor direciona-se a releituras constantes dos textos de Marx e de sua dialética que indica, por si só, esse potencial de transformação da realidade.

A leitura dos capítulos de As peculiaridades dos ingleses e outros artigos permite apreender a visão de Thompson da tradição marxista, definida em sua compreensão do materialismo histórico como vital à orientação teórica no estudo das particularidades dos processos históricos reais e como necessária ao abordar a história a partir do ponto de vista das classes dominadas. Também colaboram para a compreensão de uma variedade de modos de dominação e das revoluções em lugares distintos, dos conceitos de classe e consciência de classe como históricos e da discussão de ideias básicas de Marx “à luz da relação entre antropologia e história”. História inseparável da vivência humana.

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As peculiaridades dos ingleses e outros artigos

Organizadores: Antonio Luigi Negro e Sergio Silva

ISBN: 9788526809680

Edição: 2

Ano: 2012

Páginas: 288 p.

Dimensões: 21,00 x 14,00 x 1,50 cm.

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