Sobre a literatura do sistema-mundial capitalista moderno

Por Luisa Ghidotti Souza

“As relações literárias de poder são formas de relações políticas de poder.” Pascale Casanova. 

A literatura comparada tem ganhado força nos últimos anos, com a adesão de muitos críticos, que buscam o método comparatista para ampliar o horizonte de suas análises. A chegada ao Brasil, em 2020, do livro Desenvolvimento combinado e desigual: por uma nova teoria da literatura-mundial certamente adensará as discussões sobre o circuito literário transnacional ao propor um remapeamento da análise do modernismo. A obra, traduzida e organizada pelo grupo Kaliban – Centro de Pesquisa em Estudos Pós-Coloniais e Literatura Mundial da Unicamp –, sob a coordenação dos professores Elena Brugioni, Alfredo Cesar Melo e Paulo de Medeiros, reorganiza as concepções da teoria literária a partir do conceito de sistema-mundial e propõe uma virada na concepção de modernidade na América Latina. 

A inovação começa com a própria ideia de autoria, pois o livro é assinado pelo Coletivo de Pesquisa Warwick (WREC — Warwick Research Collective) e não por autores individuais. Formado em 2007 por membros do Departamento de Inglês e Estudos em Literatura Comparada da Universidade de Warwick, Inglaterra, o grupo tem interesse nas recentes teorias sobre o sistema da literatura-mundial, tomando como base autores contemporâneos, como Franco Moretti. Composto por especialistas de diferentes subáreas, como estudos coloniais e pós-coloniais, estudos americanos e literatura europeia, o Coletivo defende o trabalho colaborativo, “apontando para a necessidade e a urgência de iniciativas e respostas coletivas — globais, mundiais, planetárias — aos impasses e desafios que marcam o mundo em que vivemos”.

O livro desenvolve, em 344 páginas, análises sobre a literatura contemporânea, sob a perspectiva comparada, e tem como ponto de partida as discussões sobre anglofonia de Raymond Williams e seus desdobramentos no debate sobre a literatura mundial. Retoma também a obra de Trotsky, a partir da qual observa que conexões existem entre literatura, capitalismo, desigualdade e diferença. O Coletivo recorre à ideia de desenvolvimento combinado e desigual e à constatação da ocorrência ambígua de avanços e atrasos nos processos de modernização para situar a literatura-mundial. Jameson já percebia que essa teoria trotskista aparecia em diversas produções literárias, como no realismo mágico, no primitivismo, no surrealismo, no naturalismo supernatural e no realismo crítico. Para regar o debate, nos dois primeiros capítulos recorre-se a diversos teóricos que pensaram a respeito da sempre iminente crise da literatura. Os autores afirmam que as teorias apocalípticas que vislumbraram uma crise literária nos anos 80, de Williams a Spivack, abriram espaço para novas iniciativas, “entre elas o pós colonial, os estudos étnicos e feministas, os estudos culturais, as intervenções epistemológicas e metodológicas do pós-estruturalismo, do pós-modernismo e da desconstrução”. 

O conceito de literatura-mundial busca entender o campo literário como integrado às redes e aos sistemas social e econômico tanto quanto a cultura, a língua e as multinacionais, por exemplo. Todas essas dimensões, inseridas na globalização, podem ser explicadas pela teoria do desenvolvimento combinado e desigual, uma vez que ideias como transnacionalismo, desterritorialização, diáspora e cosmopolitismo são entendidas como participantes do sistema mercadológico. 

Diante da capitalização do mundo, leitura e escrita de romances podem ser entendidas como “imagens dialéticas de desigualdade combinada que requerem não apenas uma simples decodificação, mas uma aplicação criativa”, como é exemplificado nas análises construídas nesse livro em que debatem os romances de Tayeb Salih, Victor Pelevin, Peter Pist’anek, Pio Baroja, Halldór Laxness, James Kelman e Ivan Vladislavic, compondo uma paisagem da literatura-mundial como sistema.

O primeiro texto selecionado pelo Coletivo para pensar a literatura-mundial é Tempo de migrar para o norte, do escritor sudanês Salih, considerado o romance árabe mais importante do século XX pela Academia de Literatura, na Síria. O livro foi censurado no Islã no início dos anos 90 e ainda hoje é proibido em diversos países do Oriente Médio. Esse é um romance irrealista, que trata do tema do colonialismo na fronteira entre África e Ásia, escrito por um árabe negro nascido e crescido nas bordas do Rio Nilo e que, segundo os autores, “registra o impacto do desenvolvimento combinado e desigual na periferia colonial”. 

Já o capítulo quatro discute o romance The sacred book of the werewolf do russo Victor Pelevin, dando continuidade à discussão a partir da análise do “choque da transição do comunismo ao capitalismo neoliberal” no contexto da semiperiferia pós-soviética da Europa. No capítulo cinco (“A periferia literária europeia”), a análise do romance Rivers of babylon, do eslovaco Peter Pist’anek, desenvolve uma visão sobre o pós-comunismo. O autor sul-africano Ivan Vladslavic aparece no capítulo seguinte e encerra a análise, como uma amostra do realismo mágico na África contemporânea, inserindo a cidade de Joanesburgo pós-apartheid no desenho da literatura-mundial. 

“A escolha desse corpus formado por autores , tradições e geografias heterogêneas e distintas, em que a forma do romance é escolhida por sua dimensão paradigmática e não meramente exemplar, parece constituir mais uma resposta coerente e sintomática aos pressupostos que determinam o surgimento da categoria literatura-mundial e, por conseguinte, à prática da literatura comparada como espelho do mundo.” 

Desenvolvimento combinado e desigual: por uma nova teoria da literatura-mundial oferece aos intelectuais brasileiros uma alternativa metodológica à literatura comparada com sofisticado rigor teórico. A obra não se pretende otimista, mas, ao menos, vislumbra a possibilidade de desterritorializar a linguagem, a cultura e a literatura.

Para saber mais sobre o livro e adquirir o seu exemplar, acesse o nosso site!

Desenvolvimento combinado e desigual: por uma nova teoria da literatura-mundial

Autor: Coletivo de Pesquisa de Warwick

Tradutora: Gabriela Beduschi Zanfelice

ISBN: 978-65-86253-29-0

Edição: 1ª

Ano: 2020

Páginas: 344

Dimensões: 14×21

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