O tratado sobre pintura de Shitao, o “Monge Abóbora-Amarga”

As anotações sobre pintura do Monge Abóbora-Amarga
Shitao – Atravessando a torrente

Por Cristiane Trindade

Na antiga China, era comum a adoção de diversos cognomes por aqueles que faziam parte da elite letrada, sobretudo os pintores. Zhu Ruoji foi o verdadeiro nome do pintor Shitao, que deu a si mesmo nada menos do que 30 apelidos. Um dos mais prestigiados e enigmáticos deles foi “Monge Abóbora-Amarga”. De acordo com um erudito da época Qing, a abóbora-amarga – também conhecida na antiga China como “abóbora-nobre” – , tem por característica, ao ser cozida com outros alimentos, conservar para si sua amargura.

De sangue imperial, Shitao descendia da família fundadora da dinastia Ming, que governou a China de 1368 a 1644. Quando Shitao tinha provavelmente cerca de dois anos, em 1644, a dinastia Qing foi fundada em Beijing com a invasão dos manchus, obrigando os legitimistas Ming a se refugiarem em diversas cidades do país. Ao disputar a regência da cidade de Guilin com outros legitimistas de sua dinastia, o pai de Shitao acabou assassinado, e ele, na época uma criança muito pequena, foi levado por um dos servidores de sua família para um mosteiro, onde cresceu anonimamente como monge.

O Monge Abóbora-Amarga, no entanto, aos poucos abandonou o isolamento dos monastérios para estabelecer relações com letrados, pintores e poetas de sua época, empreendendo viagens às montanhas das províncias chinesas e produzindo esboços dessas paisagens que marcaram sua pintura posterior. Confirmando uma trajetória com ascendência aristocrática, mas marcada pela educação monástica, sua produção deixa entrever influências da cosmologia antiga, do pensamento taoísta, da filosofia do budismo chan e do pensamento confuciano.

Datam do século IV os fragmentos conservados dos tratados mais antigos sobre teorias da pintura na China. Presume-se que as Anotações sobre pintura do Monge Abóbora-Amarga tenham sido escritas no início do século XVI, sendo, portanto, uma produção relativamente tardia dessa longa tradição. Apesar da semelhança, na organização e na divisão, com os antigos tratados sobre teorias da pintura, o trabalho de Shitao é muito original, por tratar questões próprias ao domínio da pintura de uma perspectiva filosófica, em vez de apresentar apenas receitas práticas, referências históricas e julgamentos críticos sobre obras e artistas, como faziam as produções tradicionais.

O que Shitao propõe em seu tratado é uma “filosofia do ato do pintor” baseada nas três correntes do pensamento chinês que mais influenciaram sua formação como monge: taoísta, confucionista e budista. Para ele, não faria o menor sentido que as regras da pintura fossem apenas um inventário dos procedimentos clássicos que o pintor busca imitar, isso porque uma verdadeira “regra” sobre a pintura deve ser libertadora, partindo de uma meditação sobre o próprio ato, que tem sua origem no impulso criador individual.

O enorme alcance de seu trabalho incidiu nas obras de importantes artistas contemporâneos chineses, dentre eles, Huang Binhong, Qi Baishi, Zang Daqian e Fu Baoshi. Ao leitor ocidental, talvez pareça difícil conceber reflexões tão distantes de sua cultura. Por isso, com o objetivo de tornar acessível ao público brasileiro essa obra de referência para os estudos sobre pintura, a Editora da Unicamp publicou uma edição do tratado de Shitao, intitulada As anotações sobre pintura do Monge Abóbora-Amarga, com comentários fundamentais à compreensão e ao aproveitamento do texto produzidos pelo sinólogo belga Pierre Ryckmans.

Além da série de notas que acompanham cada um dos 18 capítulos das Anotações de Shitao, o livro possui dois índices – um dos temas abordados e outro dos termos em chinês analisados por Ryckmans –, os quais permitem a consulta de acordo com o interesse do leitor. No “Apêndice à edição brasileira”, encontra-se uma cronologia da história da China, e nos “Anexos” há uma bibliografia geral e uma série de apresentações breves sobre as fontes utilizadas ao longo da obra e sobre sua posição no conjunto das teorias pictóricas chinesas. Por fim, 20 reproduções de obras de artistas da pintura tradicional chinesa, seis delas de Shitao, compõem o “Caderno de imagens” no fim da edição.

As anotações sobre pintura do Monge Abóbora-Amarga livro

As anotações sobre pintura do Monge Abóbora-Amarga

Autor: Pierre Ryckmans
Tradutor: Carlos Matuck e Giliane Ingrat

ISBN: 978-85-268-0882-9

Edição: 1ª

Ano: 2010

Páginas: 280

Dimensões: 16×23

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