Monumento a um mundo em ruínas ou a crise da memória cultural no Ocidente

Espaços da recordação
Hall dos nomes no Yad Vashem, em Jerusalém.

Por Cristiane Trindade

Numa colina nos arredores de Jerusalém, uma construção triangular escavada no chão nos coloca diante de uma gigantesca projeção cinematográfica. O mundo apresentado é cheio de vida, adultos sorridentes posam para fotos e crianças brincam na rua com carrinhos de rolimã, enquanto progressivamente desaparecem da tela. Trata-se de uma série curta de filmes caseiros, produzidos durante os anos 1920 e 1930 por diversas comunidades judaicas situadas em território europeu. Se dispostos a prosseguir a narrativa, fotos, obras de arte, cartas e testemunhos nos informam que nos próximos capítulos sucedem a ascensão dos nazistas ao poder na Alemanha e a perseguição e o extermínio do povo judeu. Na saída para o fim da história, a parte externa do edifício nos leva à visão da cidade de Jerusalém. O desfecho é evidente: encontramo-nos nele.

Localizado em Har Hazikaron, o monte da memória, em Jerusalém, Yad Vashem – The World Holocaust Remembrance Center – é o principal órgão oficial israelense dedicado à preservação da história do genocídio do povo judeu. Em processo de reestruturação do memorial, no início dos anos 2000, diversos artefatos do período, dentre os quais itens pessoais das vítimas e dos sobreviventes, foram distribuídos ao longo do edifício de modo a contar histórias individuais dos judeus – pessoas comuns cujas vidas foram permanentemente devastadas pela Shoah.

Pelas lentes de Naomi Tereza Salmon – fotógrafa israelita da terceira geração do pós-guerra –, os itens isolados se destacam contra um fundo branco. Sem contexto para fundamentar-lhes a existência, os objetos são dispostos com preciso rigor e limpeza clínica, evitando qualquer traço de estetização e aludindo à violência reificante a que foram submetidas vidas humanas.

Em Espaços da recordação, Aleida Assmann, egiptóloga e professora de língua inglesa e literatura comparada na Universidade de Konstanz, na Alemanha, busca refletir – dentre outros – sobre os diferentes processos de memoração na arte após a Segunda Guerra Mundial, produzida por artistas que, como Salmon, cresceram em um mundo impregnado por ruínas e destruição.

Em três partes, intituladas “Funções”, “Meios” e “Armazenadores”, a autora teoriza sobre os diferentes tipos de memória, mídias memorativas e seus suportes de conservação. Longe de constituir uma teoria unificadora, o estudo percorre a história da cultura no Ocidente para esclarecer a importância da recordação nos processos de construção de identidade.

Para Assmann, o arquivo é também um espaço onde o passado é construído, determinado não só pelos interesses políticos, sociais e culturais, mas também pelos meios de comunicação e as técnicas de registro, que definem a estrutura e a consistência dos espaços de recordação cultural.

No contexto do que intitula “crise da memória cultural”, Assmann aponta duas opções: os arquivos podem ser dispostos como memória funcional, em que os documentos asseguram base legitimadora das relações de poder vigentes, ou como memória de armazenamento, em que se revelam apenas fonte de saber histórico – um “cemitério de dados”.

Além de oferecer pioneira reflexão sobre memória cultural, o livro Espaços da recordação, publicado em 2013 pela Editora da Unicamp, torna acessível pela primeira vez em português texto-chave para estudos nesse campo. Fundamentalmente interdisciplinar, o trabalho de Assmann não deve deixar de interessar a historiadores, acadêmicos da área de literatura e filosofia e à comunidade em geral.

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Espaços da recordação – Formas e transformações da memória cultural
Autor: Aleida Assmann
Tradutor: Paulo Soethe (coord.)
ISBN: 978-85-268-0959-8
Reimpressão: 1ª – 2016
Edição: 1ª
Ano: 2011
Páginas: 456
Dimensões: 16×23

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