Revista Pro-Posições publica resenha sobre o livro “Paulo Freire, a cultura e a educação”

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O autor e a coautora desta resenha prontamente se reconhecem na obra, nos termos acima mencionados. Colega de Débora no Departamento de Ciências Sociais na Educação da Faculdade de Educação da Unicamp, ao qual o próprio Paulo Freire esteve ligado, o autor se vê quase que pessoalmente imbricado em muitos dos aspectos analisados no livro, em especial os institucionais; de outro lado, a coautora da resenha, aluna de doutorado no mesmo departamento e instituição, encontra no livro tanto o Paulo Freire educador, figura quase mítica, como o professor que percorreu os corredores e salas de aula que ela mesma percorre agora. Sobretudo, um e outra tomam contato com o intelectual, mas também com o ser humano de carne e osso cuja face humana poucas pessoas poderiam retratar com tamanha minúcia como o faz Débora Mazza.

Publicado em 2022 pela Editora Unicamp, o livro é organizado em seis capítulos, além de uma introdução e do prefácio escrito por Carlos Rodrigues Brandão, o qual conviveu com Mazza e com Paulo Freire durante o tempo em que este foi professor na Unicamp. Fruto da Tese de Livre-Docência ocorrida em 2021, parte do material apresentado já havia sido publicado em artigos ou textos esparsos, porém agora retrabalhados e modificados. Após a leitura do conjunto dos capítulos, a impressão que fica é a de um texto coeso e coerente, muito embora a escrita seja modulada aqui e ali de acordo com o caráter mais – ou menos – pessoal impresso pela autora.

Logo na introdução, Mazza contextualiza o momento de escrita do livro e explica se tratar, na realidade, de um desejo de produzir uma sociobiografia do educador, com o qual ela conviveu na década de 1980 e no início da década 1990, quando foi sua aluna, orientanda e amiga.3 Ainda na trilha dos afetos, a autora fala de sua proximidade com outra colega de Departamento, também amante, como Freire, das árvores e das sombras que elas proporcionam:4 Patrizia Piozzi, que teria deixado marcas indeléveis em sua personalidade e visão de educação, permeadas por ideias libertários, populares e emancipatórios. Com Piozzi em mente, Freire é, assim, trazido à baila.5

No primeiro capítulo, intitulado “Uma breve biografia de Paulo Freire”, são apresentados aspectos da vida do educador que serão retomados de maneira mais aprofundada nos capítulos subsequentes. Débora Mazza traça um breve relato sobre a vida do pernambucano nascido em 1921 que se graduou em Direito, mas, impelido pela situação financeira da família, passou a atuar como professor de língua portuguesa. Assim, foi na docência que Freire encontrou a realização profissional e foi também a partir de suas experiências no Recife e sua convivência com outros educadores e outras educadoras que começaram a surgir, no jovem Freire, os primeiros questionamentos a respeito do contexto educacional de sua época. O analfabetismo seguia como uma das chagas nacionais, sobretudo entre as populações mais desfavorecidas. A questão do analfabetismo e da educação de adultos e adultas, ademais, constituiu motivo de inquietação perene na vida e na obra de Paulo Freire.

Ainda no Nordeste, juntamente com alguns e algumas entusiastas da educação popular, a autora nos mostra como Freire realizou experiências com a alfabetização de adultos e adultas por meio dos chamados “círculos de cultura”, iniciativa a partir da qual foi convidado, em 1964, no governo de João Goulart, para coordenar o Programa Nacional de Alfabetização de Adultos (PNA), que teve vida curta devido ao golpe civil militar de 1964 que culminaria na perseguição, prisão e no posterior exílio de Freire – que só retornaria ao Brasil de forma definitiva em 1980. Mazza relata, com detalhes, o percurso do educador nesses mais de 15 anos de exílio: a sua atuação, em âmbito internacional, no desenvolvimento de programas de alfabetização de adultos e adultas; e a luta pela descolonização em diferentes países, bem como as tensões, as ambiguidades e os simplismos que caracterizam a recepção da obra de Freire, sobretudo no Brasil.

No capítulo dois, “Paulo Freire e a constituição de um pensamento educacional”, Mazza analisa a ambiência (como ela mesmo qualifica) das décadas brasileiras de 1930 a 1960. No período, o País passava por uma série de mudanças estruturais e sociais, com a tentativa de implementação de um sistema público e universal de educação, ideal defendido por setores intelectuais como forma de modernizar a nação e preparar sua mão de obra para o mercado de trabalho em transformação, o que traria como consequência também a redução das desigualdades. Em Recife, Freire se deparava com tais questões e propunha, no período em que esteve à frente do Serviço Educacional da Indústria (1947-1957), o combate das desigualdades sociais por meio da transformação e da descolonização da educação, especialmente a de adultos e adultas.

Para o problema do analfabetismo adulto, Freire defendeu a mudança da escola e dos métodos de aprendizagem, além da participação popular ativa e crítica, tendo em vista a realidade concreta do educando e da educanda e os processos de transformação social. A defesa e o desenvolvimento de metodologias heterodoxas partiam da convicção de Freire na educação como possibilidade transformadora da realidade dos oprimidos e das oprimidas. Para tanto, fazia-se necessário que essa proposta de educação fosse incontornavelmente popular, para todos e todas, visto que só o conhecimento da realidade opressora, desta perspectiva, poderia motivar homens e mulheres à mobilização para a transformação social.

O terceiro capítulo da obra, “Paulo Freire na Unicamp: o ranço autoritário e o verniz democrático” – de grande importância como registro de um episódio importantíssimo da história política, social e intelectual tanto da Unicamp como da própria educação brasileira como um todo –, assim como o quarto capítulo “Paulo Freire na Bolívia: reminiscências”, trata de experiências que Débora Mazza, pessoalmente, acompanhou e que ocorreram entre 1981 e 1991, período no qual Freire, definitivamente de volta ao Brasil, atuou como docente na Faculdade de Educação da Unicamp.

Por meio de consultas a arquivos da própria universidade, a autora reconstrói a saga da contratação do professor pela Unicamp, que se mostrou interessada em receber Paulo Freire assim que este sinalizou pela sua volta ao País no período de anistia política, a partir de 1979. Mazza, sempre apoiando-se no processo funcional de Freire na universidade, com perícia e argúcia, reconstrói como o processo ocorreu de forma intencionalmente morosa e burocrática, em função das disputas que envolviam uma parte da comunidade universitária, cujo pensamento conservador enraizado refutava a ideia de ter o nome de Freire no quadro de docentes da universidade. Daí a ideia de verniz em meio ao ranço.

Ainda que retrate posições indignas (e mesmo vergonhosas) por parte da instituição, com as idas e vindas propositais do processo de contratação de Freire como Professor Titular – cargo para o qual ele reunia, com sobras, os predicados, embora a sua contratação inicial tenha se dado num nível inferior – o de Livre-Docente –, o relato de Débora Mazza mostra, por outro lado, a atuação irretocável dos setores progressistas da Unicamp àquele momento, em especial dos e das docentes da Faculdade de Educação da Unicamp. Os três pareceres solicitados pela reitoria, entre 1984 e 1985 (reproduzidos no livro), para que Freire tivesse enfim reconhecida sua qualificação como Professor Titular, exarados por Rubem Alves, então Professor Titular do Departamento de História e Filosofia da Educação; Antônio Muniz de Rezende, Professor Titular e ex-Diretor da Faculdade; além de Amélia Domingues de Castro, Professora Titular do Departamento de Metodologia de Ensino, são motivos de orgulho para toda a comunidade acadêmica da Unicamp, assim como o ofício, verdadeira pièce de résistance, erudita e afiada, do então Chefe do Departamento ao qual Freire se vinculava, Roberto Romano da Silva.

O capítulo seguinte, como observado, rememora uma experiência pessoal da autora, a qual, na condição de orientanda de Paulo Freire, o acompanhou em uma viagem à Bolívia no ano de 1987, em um momento pessoal difícil para o educador, que vivia o luto pela perda de sua primeira esposa, Elza Freire. Nessa experiência compartilhada, Mazza narra a passagem de Freire em uma série de eventos naquele país, em especial o recebimento do título de Doutor Honoris Causa concedido por uma universidade em Cochabamba, e transcreve trechos belíssimos das intervenções realizadas por ele.

Em “Paulo Freire e o projeto escola sem partido”, resgata-se o pensamento do educador e sua atualidade, sobretudo no que tange à defesa da educação que conduz o oprimido e a oprimida ao conhecimento de sua condição social, visando a sua transformação. O objetivo da autora no quinto capítulo é o de apresentar um exemplo atual no campo da educação brasileira, que se opõe à obra e ao legado de Paulo Freire e os ataca diretamente. O movimento Escola sem Partido representa, de acordo com a autora, o resultado do avanço do neoliberalismo sobre a esfera educacional, bem como o resgate de valores neoconservadores que têm se desdobrado em ataques à escola pública e aos valores plurais e democráticos.

Assim, o desbanque da escola pública, laica, gratuita e crítica juntamente com a consequente privatização da educação estariam na agenda tanto do neoliberalismo quanto do neoconservadorismo. Neste contexto, Paulo Freire tem sido apresentado como o principal responsável pelo fracasso da educação pública brasileira, que seria excessivamente politizada e estaria a serviço de partidos e ideologias de esquerda. Tais críticas, conforme a autora, vêm de setores que não conhecem o campo educacional brasileiro e, tampouco, a obra do educador. Mazza sugere que compreender as disputas atuais, as motivações e os interesses das partes que compõem esse campo de disputas representa a melhor forma de resistência.

O desfecho da obra segue no mesmo diapasão, mas pela ótica contrária. No sexto e último capítulo, “À sombra dessa mangueira”, alguns dos percalços relativos ao pensamento pedagógico e à atuação política de Paulo Freire são apresentados, em uma clara tentativa de afastamento crítico. Mazza cita, por exemplo, as consultorias dadas pelo educador e sua equipe a alguns países africanos em relação à alfabetização. Embora tais países possuíssem a língua portuguesa como idioma oficial, problemas inerentes às diferenças culturais (e mesmo linguísticas) locais impediram o sucesso da aplicação do método freiriano. Não teria havido, nesse sentido, tempo hábil suficiente para que a equipe pudesse ter conhecido suficientemente as culturas locais no intuito de alfabetizá-las.

Mazza apresenta também as críticas – em especial aquelas endereçadas por Dermeval Saviani – ao pensamento freiriano, advindas da emergência, a partir da década de 1980, da pedagogia histórico-crítica. A pedagogia de Paulo Freire seria “regionalista, cristã, romântica, escolanovista e não qualificadora do trabalho escolar” (p.194). O protagonismo do professor ou da professora, que traz os conteúdos e, assim, conduz o processo de formação da consciência política nos e nas estudantes, numa leitura marxista em voga à época, acabou por criar cisões das propostas educacionais freirianas, inextricavelmente dialógicas e populares, com outras correntes educacionais, isto no seio da própria esquerda. Outros questionamentos, aponta a autora, foram colocados a partir da atuação de Freire como Secretário de Educação da Prefeitura de São Paulo, entre 1989 e 1991, durante a gestão de Luiza Erundina, na qual inseriu obras de sua autoria nas bibliografias dos concursos públicos e propôs consultas públicas para os cargos de direção de escolas.

Em relação à visão propriamente editorial do livro, cabe destacar alguns pontos que trariam uma experiência mais agradável para o leitor ou a leitora, embora a edição tenha, no geral, um projeto bem realizado. Devido à quantidade e à importância do material iconográfico reunido pela autora (alguns deles, inéditos), talvez valesse a pena, numa possível próxima edição, que ele fosse reunido em encarte e apresentado em papel mais adequado para a finalidade. Evidentemente, as editoras – mesmo as universitárias – buscam a medida adequada entre os custos de produção e a sustentabilidade comercial das empreitadas; contudo, por se tratar de obra vencedora de edital aberto aos docentes da Universidade e, sobretudo, por tratar de sua própria história a partir da trajetória de uma figura como Paulo Freire, o livro de Mazza mereceria um trato mais cuidadoso. Ainda nesse sentido, algumas ilustrações não trazem descrição informativa, como a Figura 20, na qual as componentes da Mesa em homenagem a Paulo Freire não são identificadas. Também é difícil compreender a utilização de notas reunidas ao final de cada capítulo no lugar de notas de pé de página, algo de simples resolução que tornaria a leitura mais fluida e convidativa.

Como resultado final, parece não ser o intuito de Débora Mazza apresentar uma visão utópica e romântica, ou meramente laudatória, da figura e das ações de Paulo Freire, mas mostrá-lo como pessoa que ocupou, ao longo do tempo, diferentes posições sociais e políticas em distintos ambientes e, por consequência, defendeu certas ideias e agiu conforme as suas convicções. Inegável é afirmar que o pensamento freiriano, inserido em disputas e conflitos, representa um legado importantíssimo para a educação brasileira por sua abrangência crítica e visão voltada prioritariamente para as classes populares e os grupos subalternos.

  • 2Normalização, preparação e revisão textual: Leda Maria de Souza Freitas Farahleda.farah@terra.com.br
  • 3A autora se refere quase sempre a Freire por meio de seu prenome, Paulo.
  • 4O título da introdução, cabe ressaltar, é “À sombra de uma mangueira”, numa clara referência a uma das obras de Freire (2005).
  • 5Por mais um destes acasos cheios de sentido, coube a mim substituir Patrizia Piozzi, em 2014, no Departamento de Ciências Sociais na Educação, na cadeira de Teorias Políticas e Educação. Infelizmente, não tive a oportunidade de conviver com a pessoa gentil, de finos tratos e grande erudição sempre exaltada pelos amigos e amigas.

Referências

  • Freire, Paulo (2005). À sombra desta mangueira São Paulo: Olho d’Água.

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Editor responsável: Chantal Victória Medaets https://orcid.org/0000-0002-7834-3834

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