
Marcella Fernandes Dias
Com o objetivo de cultivar a língua portuguesa e a literatura nacional, a Academia Brasileira de Letras (ABL) foi fundada em 20 de julho de 1897, no Rio de Janeiro. Por muito tempo, a instituição permaneceu restrita aos homens: somente 80 anos após sua fundação, em 1977, uma mulher foi eleita para ocupar uma das cadeiras da ABL – a escritora cearense Rachel de Queiroz. Já a eleição de uma mulher negra ocorreu apenas em 2025, com a indicação da escritora mineira Ana Maria Gonçalves.
Durante séculos, a figura feminina foi excluída do cenário literário brasileiro e tratada com inferioridade em relação aos homens – sendo, muitas vezes, vista como “irracional” ou até mesmo “histérica”. É a partir dessas e de outras representações que a obra O maldito no feminino: a escrita literária transgressiva em língua portuguesa, de Maria Lúcia Dal Farra, analisa as figurações da mulher na literatura que associaram determinadas escritoras à ideia de “maldição”.
Maria Lúcia Dal Farra é graduada em Letras pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Botucatu (FFCLB) e licenciada em Piano e Educação Musical pela Faculdade de Música Santa Marcelina de Botucatu (FMSMB). Realizou mestrado e doutorado em Letras Clássicas e Vernáculas pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutorado pela Universidade de Lisboa e pela Escola Prática de Altos Estudos de Paris. Professora titular da Universidade Federal de Sergipe (UFS), é livre-docente pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde integrou a equipe fundadora do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/Unicamp). Além disso, é escritora e vencedora do Prêmio Jabuti de Poesia de 2012.
Em O maldito no feminino, a autora traça um panorama histórico – da Idade Média portuguesa à contemporaneidade – para compreender a escrita transgressiva feminina que associou determinadas mulheres à ideia de “maldição” nas literaturas brasileira, portuguesa e africanas de expressão portuguesa. Para isso, analisa obras de autoria masculina e, com maior ênfase, produções literárias de autoria feminina, tanto na prosa quanto na poesia. O objetivo é entender como as mulheres abordaram temas considerados, histórica e culturalmente, de “domínio feminino” – como o ambiente doméstico – e, sobretudo, como expressaram suas intimidades e subjetividades por meio da escrita.
O livro é composto de vinte e sete capítulos, além das referências bibliográficas utilizadas pela autora. Trata-se, portanto, de um estudo aprofundado e detalhado sobre as representações do maldito na literatura. Na primeira parte, intitulada “Pórtico”, Dal Farra reflete sobre como, ao longo de mais de 20 anos de pesquisa com o CNPq, percebeu que a figura da mulher era frequentemente concebida como incompatível com o seu tempo – sendo, muitas vezes, rejeitada ou odiada por sua produção literária e comportamento social. Um exemplo emblemático é o da figura da bruxa: na Idade Média, mulheres consideradas hereges eram perseguidas e queimadas vivas nas fogueiras da Inquisição.
Outro ponto relevante discutido pela autora é a omissão da autoria feminina na linguagem. Segundo Dal Farra, quando uma obra escrita por uma mulher não aborda temas considerados “femininos”, costuma-se atribuí-la a um “poeta” – termo masculino –, ainda que o substantivo tenha forma feminina. Ela observa:
Assim, quando uma poetisa é considerada de “alto nível”, ela ascende de “poetisa” para “poeta”, o que a alça em pé de igualdade a seus pares masculinos. Quando não, ela é dita “poetisa” – vocábulo que se tornou absolutamente pejorativo, pois que passou a indicar a escritora-mulher como sendo uma “poeta” menor, inferior. Da mesma forma, se o trabalho artístico de uma mulher não apresenta indicação direta de gênero, a tendência tem sido sempre a de apodar a sua autora com o epíteto de… “poeta”.
Inicialmente, Dal Farra analisa as lendas medievais portuguesas “Dama Pé de Cabra” e “Dona Marinha”, registradas no Livro de linhagens, do Conde Dom Pedro de Barcelos. Esses textos revelam valores fundantes sobre o feminino, ao associar a imagem da mulher à de uma “senhora de todos os dotes de perfeição física e moral”. Em contrapartida, também a apresentam como pecadora, rebelde, desobediente e indomável – representações que ecoam em outras figuras, como a da freira Mariana Alcoforado, considerada herege diante do tribunal da Santa Inquisição.
Entre as autoras analisadas no livro estão Gilka Machado, Judith Teixeira, Adília Lopes, Inês Pedrosa e Cecília Meireles. No famoso poema “Retrato”, por exemplo, Meireles reflete sobre a passagem do tempo e as transformações em si mesma, discutindo aspectos da condição feminina. Além das escritoras brasileiras e portuguesas, Dal Farra dedica parte de sua análise às literaturas africanas de língua portuguesa, abordando autores como Ondjaki, Craveirinha, Ana Paula Tavares, Chó do Guri, Conceição Lima, entre outros.
Assim, O maldito no feminino: a escrita literária transgressiva em língua portuguesa é um livro que, ao explorar diversas representações da mulher na literatura e a associação da figura feminina à ideia de maldição, propõe uma leitura instigante entre os eixos literário, cultural, social e histórico. É uma obra que convida o público a refletir sobre como o machismo e a misoginia excluíram inúmeras mulheres do cânone literário por supostamente “flertarem com o proibido”. E, sobretudo, é uma lembrança da importância de ocupar – com propriedade e dignidade – a palavra que nos pertence como “verdadeiras artistas do verso”.
Para conhecer o livro, visite o site da Editora da Unicamp!

O maldito no feminino: a escrita literária transgressiva em língua portuguesa
Autora: Maria Lúcia Dal Farra
ISBN: 9788526817685
Edição: 1ª
Ano: 2025
Páginas: 448
Dimensões: 16 x 23 cm