Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira[1]
Aprisionado pela ditadura fascista entre 1926 e 1937, o político e filósofo italiano Antonio Gramsci escreveu inúmeras notas que posteriormente seriam editadas e publicadas como os Cadernos do Cárcere. Ao longo das páginas de 33 cadernos escolares, Gramsci elaborou importantes reflexões acerca dos principais dilemas históricos e políticos que marcaram as primeiras décadas do século XX. Apesar de quase centenárias, as ideias desenvolvidas por Gramsci na prisão permanecem dialogando com as vicissitudes de um turbulento e enigmático século XXI. Nesse sentido, ressaltando a pertinência do pensamento gramsciano, o livro O moderno príncipe de Gramsci, escrito pela filósofa italiana Francesca Izzo, demonstra a elaboração de um pensamento orientado por um nexo indissolúvel entre a escrita da história e a ação política.
Partindo de uma análise filológica, Izzo acompanha o ritmo de pensamento a partir do qual Gramsci delineia suas principais categorias. Para tanto, conforme demonstra a autora, Gramsci compreende que a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) assinala a constituição de um novo momento histórico marcado pelo descompasso entre uma economia cada vez mais mundial e uma política ainda encerrada nos limites dos Estados nacionais. Com isso, as principais categorias criadas nos Cadernos do Cárcere, como a teoria da hegemonia, são mobilizadas para orientar a formação de um sujeito cosmopolita capaz de gerir novas formações políticas supranacionais.
A centralidade da guerra no pensamento de Gramsci, mais que estabelecer uma periodização para o início do século XX, também delimita um momento de reorientação histórica e política da modernidade. Analisando a península Itálica dos tempos de Maquiavel, as notas carcerárias revelam a inquietude do secretário florentino diante do atraso italiano em relação às demais monarquias europeias que se unificavam. Na angústia de Maquiavel, Gramsci percebe que a dinâmica política do início da modernidade europeia se afastava das características do Império Romano e da cristandade medieval, de modo que, diante dessa transformação, os indivíduos modernos passam a se articular politicamente a partir de uma relação ordenada em torno de um território nacional.
Essa dinâmica, consolidada e aprofundada entre os séculos XVI e XIX, marca também uma nova configuração das ações dos intelectuais. Conforme analisa Izzo, Gramsci amplia consideravelmente o conceito de intelectual. Mais que um indivíduo vinculado às letras e à erudição, o intelectual gramsciano assume uma função diretiva e organizativa. Assim, ao longo dos processos de constituição do Estado moderno, os intelectuais foram responsáveis por estimular e organizar as vontades populares em torno de uma perspectiva nacional.
A unificação tardia da península Itálica assinala, para Gramsci, o atraso italiano em relação a outros países europeus que se unificaram anteriormente. Tais países, ao longo da modernidade, atravessaram um processo de encontro entre intelectuais e povo marcado pela mobilização de uma vontade política nacional popular. Nessa leitura, eventos como a Reforma Protestante e o Renascimento são vislumbrados como representações do desenvolvimento de uma nova cultura que, como no Renascimento, foi estimulada e mobilizada por uma elite intelectual e, como na Reforma, tornou-se popular.
Na Itália, esse mesmo processo não ocorreu em virtude da persistência de uma cultura cosmopolita entre os intelectuais italianos. Sede do Império Romano e da cristandade, os intelectuais italianos, tradicionalmente avessos ao enquadramento nacional de suas funções, embora vinculados ao Renascimento, não participaram da Reforma. Com isso, diferentemente dos demais países europeus, a realidade italiana é fortemente marcada por uma fratura entre intelectuais e povo responsável por dificultar o processo de constituição de uma vontade política nacional popular. Portanto, pensada no interior dessa dinâmica política territorial e nacional da modernidade, a ação dos intelectuais italianos deve se constituir, para Gramsci, como a antítese desse distanciamento histórico entre intelectuais e povo. Nesse momento da escrita dos Cadernos, a superação do atraso italiano e, consequentemente, das desigualdades sociais na Itália está relacionada à completude da unificação nacional a partir de uma perspectiva popular.
Em virtude das críticas ao cosmopolitismo italiano e da necessidade de formação de uma vontade política nacional popular, Gramsci foi compreendido, inclusive na Itália, como intelectual e político precursor das vias nacionais para o desenvolvimento do socialismo. No final dos anos 1940, por ocasião da publicação das primeiras versões dos manuscritos carcerários na Itália, Palmiro Togliatti, secretário-geral do Partido Comunista Italiano, afirmou que as reflexões de Gramsci contribuíam para que cada nação propusesse uma política revolucionária de acordo com suas próprias especificidades nacionais. Todavia, conforme demonstra Francesca Izzo, a leitura de Gramsci como intelectual vinculado às vias nacionais para o socialismo é equivocada. Isso ocorre porque, ao longo da escrita dos cadernos, entre 1929 e 1935, Gramsci alterou os caminhos e sentidos de suas reflexões. Nesses termos, a crítica ao cosmopolitismo italiano foi desenvolvida no início das reflexões carcerárias. Assim, marcado ainda pelos impactos da Primeira Guerra Mundial e da Crise de 1929, Gramsci reconsidera suas leituras em torno da modernidade europeia e de sua principal formação política, o Estado nacional.
Essa reconsideração, como assevera Izzo, parte do diagnóstico de uma nova realidade histórica inaugurada a partir do final do século XIX e intensificada nas primeiras décadas do século XX. Eventos como a guerra e a crise econômica mundial revelam um descompasso entre a política e a economia. Enquanto a economia torna-se mundial e desvinculada dos territórios nacionais, a política ainda se desenvolve nos limites dos próprios Estados. Essa nova realidade, portanto, impulsiona Gramsci a readequar a teoria da hegemonia e a atuação política dos intelectuais para esse contexto de mundialização acentuada da produção.
Ao passo em que, no século XVI, Maquiavel escreveu o Príncipe em busca de um condottiere capaz de mobilizar uma política efetivamente nacional para a Itália, Gramsci, no século XX, se indaga acerca da necessidade de formulação de um moderno príncipe que, diferentemente das expectativas do secretário florentino, não se encarna em uma figura individual, mas na formulação de uma instituição coletiva, o partido político, capaz de mobilizar vontades nacionais e supranacionais. A busca pelo moderno príncipe, como declara brilhantemente Izzo, afirma também uma nova historicização da modernidade europeia. A partir do século XVI, a dinâmica moderna esteve vinculada à formação dos Estados. Todavia, na transição para o século XX, essa formação política torna-se defasada em razão do desenvolvimento mundial do capitalismo.
Nesse processo, a teoria da hegemonia e a função dos intelectuais são reabilitadas para operar em um contexto supranacional. Com isso, a instituição do poder político permanece sendo um desdobramento da atuação política dos intelectuais que, vinculados a determinados grupos sociais, trabalham para a construção do consenso na sociedade civil. Contudo, diante de uma leitura histórica centralizada na mundialização do capitalismo, essa constituição do consenso ocorre nacional e internacionalmente. Nesses termos, as perspectivas emancipatórias projetadas para a construção do comunismo devem ser orientadas por uma política cosmopolita capaz de se popularizar mundialmente.
Com isso, a função da Itália no concerto das nações assume novas dimensões. Abandonando sua crítica anterior aos intelectuais italianos pré-modernos, Gramsci avalia que essa tradição cosmopolita pode contribuir para a universalização e a popularização de uma cultura emancipatória. O cosmopolitismo italiano, outrora um óbice para o desenvolvimento da modernidade, torna-se central para a configuração de projetos políticos delineados para um outro momento histórico.
O partido político, portanto, adequado a essas novas possibilidades, é, para Gramsci, a instituição capaz de operar uma forma supranacional de democracia. Distanciando-se das formas de organização política leninistas, Gramsci compreende o partido como uma organização democrática que agrega intelectuais de diferentes matizes assim como variadas camadas de grupos sociais subalternos, que, partindo de uma tradição cosmopolita largamente compartilhada na Itália, pode se tornar o embrião de uma nova hegemonia a ser disputada mundialmente.
Nesse sentido, a constituição de uma nova política adequada às demandas do presente pode ser elaborada a partir de tradições do passado. Realizar o encontro entre política e economia nessa nova configuração moderna implica retomar e reconfigurar tais tradições em torno do que Gramsci nomeia como um “cosmopolitismo de novo tipo”. Diferentemente dos anteriores, o cosmopolitismo do século XX deve desvincular-se de perspectivas imperiais, nacionais e religiosas. Para Gramsci, esse novo cosmopolitismo se sustenta na expectativa de unificação do gênero humano a ser conquistada pela absorção do Estado pela sociedade civil.
Apesar das intensas transformações históricas experimentadas a partir das últimas décadas do século XX, a leitura de Gramsci proposta por Francesca Izzo aponta também para os nossos próprios dilemas. Mais que uma reconstituição exegética de um grande intelectual e político, o trabalho de Izzo compreende Gramsci como um interlocutor contemporâneo. Demarcar o contemporâneo não implica adotar critérios cronológicos, mas afirmar aqueles que habitam um mesmo tempo. Desse modo, na leitura da filósofa napolitana, Gramsci, apesar da distância cronológica, permanece habitando nosso presente.
Evidentemente, não se trata de afirmar largas continuidades entre as primeiras décadas do século XX e do XXI, mas de assinalar a existência de problemas compartilhados que ainda esperam por um desfecho. A angústia de Gramsci, em diversos sentidos, ainda é nossa. Nas últimas décadas, lideranças como Donald Trump e Jair Bolsonaro acusam organismos internacionais de formular um projeto de dominação mundial globalista. Por isso, em sua recusa ao cosmopolitismo, atualizam projetos políticos de teor nacionalista marcados pela belicosidade. Em um momento de desdemocratização política, as reflexões de Gramsci apresentadas por Francesca Izzo apontam que o enfrentamento dos novos autoritarismos também precisa ser operado a partir de uma política cosmopolita. Portanto, a tradução brasileira de O moderno príncipe de Gramsci é oferecida ao leitor brasileiro em um momento decisivo no qual aqueles que mesmo cronologicamente distantes tornam-se nossos contemporâneos e contribuem para a reflexão e a ação em torno de nossos próprios dilemas.
[1] Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista. É professor do Colégio de Aplicação e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História da Universidade Federal de Uberlândia e pós-doutorando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora.