A abolição do tráfico de africanos: uma história repensada por Rastilhos da mina

Ana Alice Kohler

“Jamais houve época em que a dialética da imposição da dominação e da resistência a essa imposição não fosse central no desenvolvimento histórico”. É com essa citação do historiador inglês Edward Palmer Thompson que Thiago Leitão de Araujo inicia seu livro, Rastilhos da mina: conspirações escravas, o Rio da Prata e a abolição do tráfico de africanos no Brasil. A obra, que teve origem em sua tese de doutorado, apresenta “o papel da própria senzala na abolição do tráfico de africanos” e integra a Coleção Várias Histórias, da Editora da Unicamp, que divulga estudos de história social voltados para a produção das diferenças e desigualdades. Todas as obras reunidas na coleção são fruto de projetos desenvolvidos no Centro de Pesquisa em História Social da Cultura (Cecult), do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Thiago Leitão de Araujo é licenciado em História e mestre em Relações Sociais de Dominação e Resistência pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em 2016, doutorou-se pela Unicamp, na linha de pesquisa História Social da Cultura. Suas investigações envolvem a história social da escravidão, práticas de alforria e resistência escrava, bem como a história política e parlamentar do Império brasileiro e as relações diplomáticas entre o Brasil e as repúblicas do Rio da Prata durante o século XIX.

Rastilhos da mina: conspirações escravas, o Rio da Prata e a abolição do tráfico de africanos no Brasil apresenta ao leitor novos contornos à já conhecida história da luta dos escravizados pela liberdade e do consequente medo dos senhores diante de uma reação – geopolítica e econômica, por parte de países como a Inglaterra, e violenta, por parte dos próprios escravizados – caso não a concedessem. A pesquisa de Araujo, nesse sentido, traz à tona novos documentos que comprovam a força da resistência dos escravizados, os quais representavam uma ameaça real aos grandes proprietários escravistas. Desse modo, a obra apresenta, além dos agradecimentos iniciais e de um prefácio escrito por Robert W. Slenes, professor da Unicamp, um prólogo, seis capítulos que tratam dos principais eventos envolvendo a luta abolicionista no Brasil e um epílogo.

No prólogo, Thiago Leitão de Araujo detalha os acontecimentos históricos que delimitam o contexto sobre o qual sua pesquisa se debruça: “a história aqui contada encontra-se numa encruzilhada entre a expansão da escravidão no Rio Grande do Sul e a liberdade que se firmava no contexto bélico uruguaio e seus efeitos recíprocos”. Assim, na obra, fatos históricos como o avanço do tráfico negreiro durante o século XIX, a abolição da escravidão no Uruguai e o agravamento das relações diplomáticas entre o Brasil e a Argentina se entrecruzam, formando um cenário complexo. Nesse sentido, a obra de Thiago Leitão de Araujo traz a situação do Rio da Prata para o centro da discussão acerca da abolição e, reciprocamente, elege a escravidão como fator central para o entendimento da questão platina, investigando os “rastilhos” da mina que, para o Império brasileiro, estava prestes a explodir.

O primeiro capítulo do livro, intitulado “A expansão da fronteira escravista”, analisa justamente a formação das fronteiras entre o Brasil e o Uruguai a partir de uma perspectiva que evidencia o papel da escravidão como elemento central no processo produtivo da região das estâncias gaúchas durante o Império. Assim, por meio de mapas e gráficos ilustrativos, Araujo demonstra o impacto do perfil demográfico da região e das fugas de escravizados nas relações diplomáticas que envolviam os limites entre as nações. No capítulo seguinte, “Tráfico ilegal de africanos e a economia do charque”, as questões sociopolíticas trabalhadas até então são relacionadas com a economia provincial, em uma análise que associa o crescimento da exportação de charque ao aumento da importação de escravizados para o Rio Grande do Sul, mesmo após a proibição do tráfico negreiro. “Em conjunto, os dois primeiros capítulos demonstram o enraizamento e a extensão da escravidão na província”.

Em “A escravidão entre a guerra e a abolição: fugitivos e soldados negros”, o terceiro capítulo de Rastilhos da mina, o leitor é levado a conhecer o outro lado da fronteira: o Uruguai do início do século XIX. Após uma contextualização da história política do país, Araujo detalha o papel do governo uruguaio no aumento da pressão que levaria, posteriormente, à abolição da escravidão em solo brasileiro. Isso porque, após a chamada “Guerra Grande”, o Uruguai decretou o fim do trabalho escravo em seu território e passou a alistar antigos escravizados em seu exército, fato que incentivou ainda mais a fuga de escravizados do Rio Grande do Sul para as terras uruguaias. Assim, o agravamento das questões diplomáticas entre o Brasil, a Argentina e o governo de Manuel Oribe no Uruguai é tema deste capítulo, já que, desde o decreto de abolição no governo de Oribe, em 1846, a situação na fronteira piorou, considerando que os blancos vinham recrutando e armando fugitivos brasileiros, o que aumentou o receio dos donos de escravizados de que houvesse uma insurreição. 

No quarto capítulo, “A terrível e inevitável retribuição da África: conspiração mina-nagô”, Araujo descreve com mais detalhes a situação de medo absoluto por parte dos proprietários do Império, ilustrada por um caso específico, em que um plano insurrecional foi descoberto na cidade gaúcha de Pelotas. A partir desse fato, o governo imperial passa a agir com ainda mais cautela, encurralado pelo perigo do armamento dos escravizados e do apoio que estes recebiam das nações vizinhas. As repercussões do caso da sublevação de Pelotas são descritas no capítulo seguinte, “1848: rebeldia escrava e a questão do tráfico ilegal de africanos”, no qual são analisadas as discussões – na imprensa e no próprio Parlamento – acerca das tensões e conspirações que tomavam conta do Rio Grande do Sul e de todo o país. Mais do que tudo, “este capítulo procura descobrir as razões que levaram à apresentação do projeto [de abolir o tráfico negreiro] em 1848 e os motivos pelos quais ele não seguiu adiante”.

O último capítulo de Rastilhos da mina, “Nec Hercules contra duo: a lei de 1850 e a abolição do tráfico”, trata, finalmente, do contexto histórico e dos desdobramentos políticos que levaram o Império brasileiro a extinguir o tráfico negreiro na metade do século XIX. De forma inovadora, Araujo aborda a questão a partir do conflito na região platina – especialmente do estremecimento das relações diplomáticas entre Brasil e Argentina –, do receio de um confronto bélico com a Inglaterra e do risco do surgimento de sublevações armadas por parte dos escravizados em território brasileiro. Dessa maneira, o autor demonstra como a abolição do tráfico de escravizados no Brasil se deu pelo temor do Estado diante de uma dupla ameaça: uma guerra estrangeira (possivelmente com duas nações distintas) e uma interna (em várias frentes).

Por fim, a obra ainda apresenta um epílogo, que traz mais detalhes do processo de abolição do tráfico negreiro, principalmente em relação às declarações abolicionistas na imprensa e aos debates dos intelectuais da época, que refletem os dilemas morais e filosóficos que preocupavam as mentes daquele tempo. Além disso, o autor comenta algumas das repercussões e das consequências do fim do tráfico de africanos, em especial nos primeiros anos após a Lei Eusébio de Queiroz. O leitor ainda tem acesso, ao final da leitura, às fontes utilizadas pelo autor e a uma bibliografia que reúne referências importantes para o entendimento da obra e da questão da abolição como um todo. 

Rastilhos da mina: conspirações escravas, o Rio da Prata e a abolição do tráfico de africanos no Brasil, portanto, apresenta uma nova perspectiva sobre um dos temas centrais da história brasileira, em especial no contexto contemporâneo de reivindicação de direitos e de revisão da historiografia feita até então. Para saber mais sobre o livro, acesse nosso site!

Rastilhos da mina: conspirações escravas, o Rio da Prata e a abolição do tráfico de africanos no Brasil

Autor: Thiago Leitão de Araujo 

ISBN: 978-85-268-1715-9

Edição: 1ª 

Ano: 2024

Páginas: 440

Dimensões: 14 x 21 cm

Deixe um comentário