Ana Alice Kohler
Em novembro de 1926, Antonio Gramsci, teórico do marxismo, foi preso pelo regime fascista italiano e condenado a 20 anos de reclusão. Devido à sua saúde debilitada, entretanto, ele obteve liberdade condicional após 11 anos como prisioneiro. O ex-deputado italiano morreu logo após sua soltura, mas deixou como legado os Cadernos do cárcere, conjunto de anotações teóricas que compõem a parte mais importante do pensamento gramsciano. É através da leitura dessas obras que Francesca Izzo constrói seu estudo em O moderno Príncipe de Gramsci: cosmopolitismo e Estado nacional nos Cadernos do cárcere. O livro, publicado recentemente pela Editora da Unicamp em coedição com a Fundação Astrojildo Pereira, oferece novas perspectivas acerca do pensador através da investigação das mudanças semânticas do termo “cosmopolitismo” e de outras transformações e substituições que contestam a imagem já estabelecida do estadista.
A autora italiana Francesca Izzo é pesquisadora e professora universitária. Formou-se em Florença e lecionou História das Doutrinas Políticas na Universidade Oriental de Nápoles. Em 1996, foi eleita deputada pelo Partido Democrático de Esquerda, no qual atuou como porta-voz das mulheres. Atualmente, faz parte da direção da Fundação Gramsci de Roma e da associação feminina DiNuovo. O tradutor da obra para o português, Alberto Aggio, é graduado em História pela USP, onde também realizou seu mestrado e seu doutorado. Já atuou como professor em diversas universidades latino-americanas e europeias e, hoje, desenvolve pesquisas acerca da história política da América Latina, do pensamento de Gramsci e da cultura política.
O livro O moderno Príncipe de Gramsci: cosmopolitismo e Estado nacional nos Cadernos do cárcere é dividido em seis capítulos que exploram diferentes aspectos da obra do pensador italiano. Logo na Introdução, a autora destaca as motivações por detrás da sua pesquisa, que partem do duplo significado de “cosmopolitismo” identificado nos Cadernos. É desmembrando e reconstruindo esse termo, posto em conflito com a ideia de democracia nacional, que serão reveladas novas sugestões e referências deixadas por Gramsci em seus escritos. Além disso, para explicitar o processo de substituição do termo “internacionalismo” por “cosmopolitismo” nos Cadernos, Izzo percorre a “teia de conceitos e categorias, da filosofia da práxis à revolução passiva, da hegemonia ao Príncipe moderno, que estruturam a trama da ‘revisão’ do marxismo que ele empreendeu”.
O primeiro capítulo do livro, intitulado “Liberalismo e comunismo no início do século XX”, trata da posição de Gramsci como pensador marxista em relação às correntes ideológicas e à lógica liberal-capitalista que se desenvolveram naquele período. Assim, a autora destaca a Primeira Guerra Mundial como o evento que salientou a crise do Estado-nação diante da internacionalização do capital. Dessa forma, Izzo estabelece os ideais gramscianos que guiarão toda a sua leitura dos Cadernos do cárcere: para ele, era necessário “nacionalizar as massas proletárias, em particular as do Sul, integrando-as plenamente na vida e na cultura da nação, e, ao mesmo tempo, promover a sua internacionalização política”.
Foi o nascimento do Estado dos Sovietes, segundo a autora, que fez Gramsci “vislumbrar uma nova forma política que poderia aspirar à substituição da soberania do Estado burguês”. Assim, a visita de Gramsci à Moscou torna-se extremamente relevante para o entendimento acerca das mudanças de perspectiva e das novas relações que o autor estabelece. A experiência soviética, nesse sentido, passou a ser vista por Gramsci como inadequada para ser “exemplo ativo e vivo da construção do socialismo”, principalmente em relação à falta de hegemonia proletária. Izzo defende, nesse ponto, que o pensamento gramsciano teve que operar “uma revisão drástica do arcabouço conceitual que o tinha levado a abraçar primeiro o internacionalismo de classe e depois, mais ainda, o internacionalismo comunista. Um repensar complexo e doloroso que cortava a carne viva das relações políticas e pessoais”.
No segundo capítulo de O moderno Príncipe de Gramsci, “O Estado moderno e o papel dos intelectuais”, a autora defende que as transformações de pensamento pelas quais passou Gramsci no início de seu período no cárcere advêm também do avanço do fascismo como força unificadora das massas italianas e do fracasso da revolução proletária no Ocidente. Dessa forma, os preceitos que regiam suas teorias tiveram que ser reestruturados, processo que vem à superfície por meio de alterações linguísticas. Segundo Izzo, os termos adotados, como “massas” e “classes e grupos subalternos”, “marcam a progressiva passagem de uma semântica econômico-sociológica para uma semântica política, baseada na mobilidade das relações de poder”. É a partir desse novo olhar que Gramsci desenvolve sua teoria acerca da intelectualidade, de um ponto de vista que se afasta das posições expressas pela Comintern, a Internacional Comunista, e das suas próprias visões anteriores.
Por meio de uma investigação detalhada da história da intelectualidade, com destaque para as figuras de Maquiavel e Dante, a teoria gramsciana determina que o papel do intelectual é “organizar a hegemonia social de um grupo e a sua dominação estatal”. Nesse ponto, ele trata do conceito mais perscrutado por Francesca Izzo, o “cosmopolitismo”. Para Gramsci, esse é o fator diferencial da intelectualidade italiana e seu aspecto fundamental. Além disso, Izzo ainda destaca a formação do pensamento gramsciano acerca do Estado-nação, entendido como a unificação da cidade e do campo, uma forma que engloba o múltiplo e o diferente através da territorialidade e que é, portanto, complexo e expansivo.
A figura-símbolo de Maquiavel recebe um foco maior no terceiro capítulo do livro, “A construção da Europa burguesa”, em que a autora demonstra a linha de pensamento que guia Gramsci na sua leitura de O Príncipe. Para o marxista, a obra será entendida como uma “filosofia da práxis”, possibilitada pela concepção historicista e dialética das relações de força. Além disso, Izzo também trata de outro juízo importante para o pensamento gramsciano: o jacobinismo. Mais uma vez, a autora identifica um ponto de ruptura entre o Gramsci em liberdade e o dos Cadernos do cárcere: antes antijacobinista, o autor considerava a lógica jacobina como perpetuadora da subalternidade das massas. Em suas anotações nos Cadernos, entretanto, Gramsci prefere deter-se no impacto histórico desse viés político, que proporcionou a aliança entre a intelectualidade e o campesinato pela produção do mito da “nação”.
Ainda nesse capítulo, Francesca Izzo detecta em David Ricardo, economista britânico, outra figura importante para a compreensão do pensamento gramsciano. As anotações dos Cadernos do cárcere, nesse sentido, apresentam ainda o conceito de “tradutibilidade recíproca”, que Gramsci mobiliza para tratar da relação entre os preceitos econômicos de Ricardo e a filosofia de Hegel. Dessa forma, as linguagens econômicas, filosóficas e políticas seriam paralelas. Segundo Izzo, é esse raciocínio que leva o pensador à “historização integral das categorias”, a contextualização das abstrações teóricas de acordo com o seu tempo. Da mesma forma, a autora ainda destaca a interpretação revolucionária que Gramsci faz da filosofia hegeliana, também em relação com a historicidade da verdade proposta por Hegel e apoiada por ele.
O quarto capítulo de O moderno Príncipe de Gramsci, “A crise da civilização europeia e a revisão do marxismo”, trata das disputas ideológicas que influenciaram nas reformulações e interpretações do marxismo pelo teórico. Assim, a “historicidade integral”, explicada anteriormente, é elencada como ponto-chave da nova elaboração da filosofia marxista proposta por Gramsci. Francesca Izzo explica, então, o conceito de “tradutibilidade das linguagens”, mobilizado por Gramsci nas suas formulações teóricas acerca da filosofia da práxis e também da função dos intelectuais como “organizadores da vontade coletiva”. Por fim, esse capítulo da obra ainda descreve a relação do autor dos Cadernos com a religião, enxergada como indissociável da razão na busca por uma reforma intelectual e moral.
Em “Maquiavel e César – Do Estado-nação ao cosmopolitismo de novo tipo”, quinto capítulo do livro, a autora trata, mais uma vez, da análise da história da intelectualidade italiana feita por Gramsci. É a partir de uma maior compreensão do próprio Estado italiano que ele tentará compreender a “crise orgânica” manifestada na quebra da bolsa de valores em 1929. O fenômeno reflete, segundo ele, a divergência entre o nacionalismo político e o cosmopolitismo econômico, que “não esmaga só a específica forma liberal do Estado […], mas a dimensão territorial-nacional da política, ou seja, o Estado-nação como tal”. É também nesse trecho que Izzo explica como o sindicalismo que se espalhou pela Europa se relaciona com a ideia de “revolução passiva” de Gramsci, com o “americanismo” da economia e com o capitalismo industrial-financeiro. Por fim, a autora ainda comenta as acepções do estadista acerca do fascismo que ganhava força em seu país e da dissolução do Estado-nação formado na era moderna.
Para concluir esse capítulo do livro, Izzo trata do tema central e motivador de sua pesquisa: a mudança do termo “internacionalismo” por “cosmopolitismo”:
Trata-se, nada mais nada menos, de eliminar do próprio léxico o termo distintivo que marcou o nascimento do novo sujeito, a Internacional dos trabalhadores, e de substituí-lo por uma palavra que relembra, por um lado, a République des lettres de setecentista memória e, por outro, evoca a histórica tradição dos intelectuais italianos que ele, como vimos, repetidamente estigmatizou. Que sentido tem esta substituição, dificilmente explicável pela cautela imposta por seu estatuto de prisioneiro?
Após explorar suas hipóteses de justificativas para essa e outras mudanças, a autora demonstra como elas fazem parte de um novo movimento gramsciano, de transformar as antigas fraquezas italianas em soluções para a crise do Estado nacional a partir do “moderno Príncipe”. Este é, ainda, o título do último capítulo da obra, “O moderno Príncipe”, em que Izzo expõe os caminhos que levam o autor a propor um livro-manifesto (o Príncipe moderno) de um partido que projetasse “dar vida a uma nova forma estatal” baseada no “cosmopolitismo de novo tipo”. Para isso, a autora explica alguns dos conceitos-chave utilizados por Gramsci na sua proposta, como “política-paixão” de Croce e “política-mito” de Sorel, filósofos muito conceituados na Itália. Assim, Francesca Izzo, unindo as pistas deixadas nos Cadernos do cárcere, remonta o que seria o anúncio de um Estado democrático supranacional, nascido da função soberana de um partido cosmopolita capaz de unir o intelectual e o povo e confundir as barreiras entre dirigentes e dirigidos.
O moderno Príncipe de Gramsci é uma obra densa que retrata um estudo completo do pensamento gramsciano a partir de uma nova perspectiva. Para saber mais sobre o livro, visite nosso site!

O moderno Príncipe de Gramsci: cosmopolitismo e Estado nacional nos Cadernos do cárcere
Autora: Francesca Izzo
ISBN: 9788526816756
Edição: 1ª
Ano: 2024
Páginas: 224
Dimensões: 16 x 23 cm